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Dossier "Les féminismes en Amérique latine et dans les Caraïbes (XXe-XXIe) : identités et enjeux"
Féminismes pluriels

A (difícil) relação do movimento Católicas pelo Direito de Decidir e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: reflexões em torno do caso da Campanha da Fraternidade de 2008

Naiara Alves  da Silva

Resúmenes

Em 1993 chegava ao Brasil Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), organização não-governamental assumidamente feminista e de confissão católica. A entidade começou a funcionar em prédio de propriedade da Igreja Católica e por isso supunha-se uma relação amistosa com a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. A Conferência é reconhecida, desde a sua criação, em 1952, como entidade de viés progressista no tocante às questões econômicas e sociais do país. O engajamento lhe valeu, inclusive, reação muito negativa nos anos em que o país atravessava uma ditadura militar, devido à postura crítica de diversos de seus bispos que posteriormente converteu-se na orientação oficial da instituição. No entanto, a agenda progressista do MCPDD entrou em rota de colisão com a postura assumida pela CNBB em certos episódios específicos da cena nacional. O objetivo do artigo é apresentá-los.

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O ativismo progressista da CNBB e a história política recente brasileira (1973-1988)

1A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) foi criada em 1952; ela expressava uma primeira organização do episcopado brasileiro e tornou-se a mais relevante instituição católica no Brasil no que se refere ao diálogo com o Vaticano. Dela também irradiavam as decisões acerca da atividade evangelizadora realizada nas igrejas espalhadas nas dioceses brasileiras. Em nenhum país da América Latina, até então, o Vaticano havia querido desempenhar um papel direto nos assuntos da “Igreja” Nacional de uma nação independente e autônoma. (Della Cava, 1974: 34). Havia contextualmente, de fato, uma preocupação do Vaticano com o que Della Cava chamou de erosão (de fiéis) no “maior” país católico do mundo (Della Cava, 1974). O brasilianista também reitera a análise de Moreira Alves de que a Conferência conseguiu desenvolver um “semi-monopólio” sobre as comunicações entre a Igreja e o poder civil e a primeira e o estrangeiro (Moreira Alves, 1979). Os bispos são os responsáveis pela unidade administrativa diocese: cada diocese é responsável por transmitir orientação administrativa e espiritual para cada igreja nela circunscrita. Os padres e leigos responsáveis pela atividade ministerial respondem à autoridade imediata dos bispos, portanto.

2Desde fins da década de 1960 alguns bispos progressistas ligados à Teologia da Libertação denunciavam o desrespeito às garantias civis individuais e aos direitos políticos. Entre os anos cinquenta e sessenta o desenvolvimentismo católico constituiu uma importante vertente do pensamento político e social brasileiro que envolvia os membros da comunidade católica envolvidos com o tema da promoção social e da redução da desigualdade social e econômica no país. O padre francês dominicano Louis-Joseph Lebret era próximo do Papa Paulo VI e colaborou decididamente na redação da Encíclica Populorum Progressio, de 1967, que “defendia a reforma agrária e apoiava os movimentos de trabalhadores sem terra”. (Godoy, 2015: 43). Padre Lebret possuía estreita relação com D. Hélder Câmara desde 1940 e “ambos defenderam políticas nacional-desenvolvimentistas e se envolveram com suas principais lideranças.” (Godoy, 2015:49)

3Nos anos setenta foi a vez da própria entidade assumir posição contrária às mesmas violações; para além da crítica ao autoritarismo do sistema político, a CNBB condenava também a disparidade econômica aprofundada com o fim do milagre econômico (1968-1973). Numa dimensão mais conjuntural, esta década marcou uma virada não somente da CNBB, mas de outros atores no que diz respeito à definição de uma postura de condenação ao regime. Em meados de 1970, a ditadura militar ia dando sinais de esgotamento no que diz respeito à sua legitimidade e apoio da sociedade. A organização partidária do governo, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) havia sido derrotada nas eleições para o Senado nos principais Estados do país, inclusive São Paulo e, no ano seguinte, foi malsucedida no esforço de abafar um protesto contra o assassinato de Vladimir Herzog, um jornalista da TV Cultura, que fora “suicidado” nos porões do Doi-Codi [Destacamento de Operações de Informação- Centro de Operações de Defesa Interna] (Nogueira e Chauí, 2007: 174).

4Simultaneamente ao crescimento econômico que ocorria durante o chamado “milagre brasileiro” (1968-1973), contudo, a violência policial cometida nos meios urbanos atingiu formas extremas de ilegalidade, o que acarretou para o período a alcunha de “anos de chumbo” (Carvalho, 2004: 120). O Estado expandiu o perfil policial no controle da sociedade e os indivíduos perderam por completo as garantias legais, ficando desprotegidos ante as ameaças dos aparatos de segurança que não conheciam limites para as suas operações (Carvalho, 2004:120). Com o fechamento do Congresso após a crise de 1968 e a suspensão do projeto mais moderado manifestado na Constituição de 1967, a estratégia de alcançar a legitimação principalmente pelo desempenho econômico tomou força. (Carvalho, 2004: 122).

5O governo Geisel (1974-1979) representou o início da lenta abertura política por que passou o país. Em seus primeiros pronunciamentos, o presidente anunciou a redefinição das relações entre o governo e a esfera política, a partir da percepção de que a sustentação exclusivamente militar trazia instabilidade para o regime, especialmente nos momentos sucessórios (Motta,2008: 2). O então Presidente revogou parcialmente a censura à imprensa, permitindo assim uma circulação maior de informações sobre os excessos do regime nos meios de circulação oficiais. Houve um crescimento significativo de organizações da sociedade civil neste período. O número total de associações dobrou em São Paulo nos anos 1970 e triplicou em Belo Horizonte na década de 1980. O aumento foi menor no Rio de Janeiro do que nas outras duas cidades, porque, por razões históricas e políticas, já tinha a maioria das associações voluntárias. (Avritzer, 2012: 388). Esse processo foi decorrente do reconhecimento dos direitos individuais de reunião e organização de associações, retomados a partir de 1974, com as primeiras medidas de Geisel que abriam o regime em suas violações aos direitos civis individuais.

6Além da denúncia dos abusos cometidos pelo Estado, a situação econômica do país também consistiu em fator determinante para a perda de legitimidade e apoio concedidos ao regime. A segunda metade de 1970 marcou o fim do “milagre econômico”; os seis anos consecutivos de taxas de crescimento superiores a 10% ao ano foram interrompidos e o déficit comercial começava a se avolumar nesse início de 1974, em função do choque do petróleo (Mantega, 1997: 5).

7Em 1973, a Conferência colocava o tema dos direitos humanos num lugar central de sua atividade evangelizadora. A decisão foi tomada na sua XIII Assembleia Geral: a escolha do tema mostrava que o grupo dos bispos progressistas e ativistas mostrava-se mais forte dentro do colegiado. Se em 1964 apoiara o golpe, em fins dos anos 60, com o aumento da violação de direitos civis – tortura a presos, sequestros, prisões arbitrárias e mesmo assassinatos cometidos pelo Estado – parte significativa do episcopado passou a condenar publicamente a ditadura militar. O contingente de bispos alinhados à doutrina de segurança nacional, na qual predominava o anticomunismo e tom persecutório às esquerdas que pairava desde abril de 1964 foi diminuindo à medida que o regime deixava ver sua face mais violenta.

8Podemos considerar de tendência política progressista o conjunto diversificado de bispos que criticavam o regime pela suspensão dos direitos civis e políticos na cena nacional. Progressistas ativistas eram aqueles que atuavam nas comissões pastorais, comunidades de base e em contato com outras formas de mobilização popular. Este tipo de ativismo marcou uma geração de bispos, padres e leigos católicos envolvidos com as questões sociais no Brasil desde os anos 50 e 60. Eles buscavam dar o máximo de concretude possível à ideia de opção preferencial pelos pobres da Igreja proferida com impacto na Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) de 1968, em Medellín, Colômbia. Os bispos progressistas organizaram e participaram de associações de moradores e de trabalhadores, envolveram-se com a educação popular, sobretudo nas regiões periféricas das regiões mais pobres do país no período, Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Um elemento que caracteriza a geração de bispos aos quais chamo de progressistas e ativistas consiste na ligação com a Teologia da Libertação. Segundo essa doutrina a opção pelos pobres significava um esforço no sentido de contribuir para a organização dos trabalhadores para que eles próprios, os oprimidos e marginalizados (para usar duas expressões muito utilizadas por esses bispos) fossem capazes de conquistar melhores condições.

9Enquanto instituição, a CNBB operou de modo ambíguo; de um lado havia figuras como D. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), D. Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife e D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, que atuavam na denúncia, inclusive internacional, do sistema político autoritário que se encontrava vigente no país. Por outro lado, Dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre e presidente interino da CNBB, chefiou a delegação da Igreja chamada pelos militares de ‘Grupo Religioso’ da Comissão Bipartite, que consistia num esforço de negociação com agentes do governo nos temas da violência e abusos do Estado, vigente entre os anos de 1970 a 1974 (Serbin, 2001). Esse grupo era composto também pelos bispos Dom Aloísio, Dom Avelar, Dom Eugênio. Representando os mais importantes setores militares, estavam alguns ideólogos e políticos do regime: general Paula Couto do Estado Maior do Exército (EME), coronel Omar do Serviço Nacional de Informação (SNI) e Dantas Barreto, assessor do Ministro da Justiça Alfredo Buzaid (Serbin, 2001: 205).

10Os bispos progressistas participaram de centros de defesa de direitos humanos organizados em diversas dioceses e estavam envolvidos nas lutas políticas presentes nas comissões pastorais. Um exemplo é a atuação de D. Pedro Casaldáliga na fundação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que lutava por melhores condições de vida e do trabalho das populações ribeirinhas e das comunidades indígenas. Por parte dos militares, a retórica de defesa e vigilância dos direitos humanos assumida pela CNBB era entendida como posição subversiva. Os bispos ativistas, então, eram tido como esquerdistas, comunistas e subversivos, como aponta o vasto levantamento documental feito por Kenneth Serbin (Serbin, 2001).

11O I Encontro Igreja e Trabalhadores Rurais, promovido pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) nos dias 28, 29 e 30 de junho de 1970. Representando a CNBB estavam: D. Eugênio Sales, Salvador (BA), D. Vicente Matos, Crato (CE), D. Milton Pereira, Guaranhus (PE), D. José Brandão de Castro, Propriá (CE), D. José Gomes, Chapecó (SC), D. Edmundo Luiz Kuntz, Porto Alegre (RS). Nas atas do evento consta que caberia ao sindicato “mostrar que o sindicalismo é um dos meios de valorização da pessoa humana e por isso um engajamento válido para os cristãos." (Revista SEDOC, 1970: 479). O grau de politização efetiva, isto é, a disposição para enfrentar publicamente o governo, variava dentro dentre os diversos espectros progressistas.

12A campanha contrária ao ativismo desses bispos não escapou à imprensa da época; muitos eram os rumores associando-lhes ao comunismo subversivo. Em dezembro de 1972, o Jornal do Brasil trazia, em seu primeiro caderno, uma página com notícias variadas trazidas de Carlos ou Alcindo, um suposto agente do serviço secreto militar infiltrado no PCB durante 20 anos. Tal era o êxito do disfarce de Carlos (ou Alcindo) que ele teria conseguido tornar-se braço direito de Luís Carlos Prestes nos últimos anos, segundo a cobertura do Jornal do Brasil. Na matéria Carlos revela as táticas do PCB, o agente explicava a instrumentalização dos bispos progressistas de tradição ativista, que serviriam à causa clandestina do comunismo no país.

A estratégia do PCB em relação à Igreja Católica no Brasil é a seguinte: 'utilizá-la, em toda a sua estrutura e como um todo, e não apenas os chamados 'progressistas' (como vinha sendo feito anteriormente), aproveitando ao máximo os canais de penetração tradicionais, para com fachada cristã, difundir, sorrateiramente, o comunismo. Por exemplo: não interessa aos soviéticos se D. Hélder Câmara é comunista ou não. O que interessa é que ele serve aos propósitos do comunismo.(JORNAL DO BRASIL, 1972: 5)11

13D. Pedro Casaldáliga foi um dos bispos a serem identificados como comunista. Suas denúncias públicas sob a forma de cartas pastorais, a crítica ao projeto autoritário e excludente de desenvolvimento, que ignorava a condição dos índios, sem-terra e camponeses pobres da região, colocavam o bispo como figura indesejada pelo regime. No começo de 1972, a Bordon S/A, empresa frigorífica, também recorreu à Associação dos Empresários da Amazônia, que publicou matérias nos principais jornais do país denunciando Casaldáliga como “bispo comunista”. (Valerio, 2013: 391). A proximidade da Prelazia com região em que se deu o combate com os militantes do PC do B na Guerrilha do Araguaia serviu de pretexto para os militares acirrarem a opressão aos religiosos da região, com a prisão e invasão do local e dos arquivos do recinto. Em 19 de agosto do mesmo ano houve uma manifestação em São Félix do Araguaia, com a presença de 15 bispos, dentre eles o cardeal D. Paulo Evaristo Arns e representantes da CNBB. O objetivo era repudiar a perseguição a que eram vítimas os sacerdotes daquela prelazia. (Castravechi, 2015)

14Em carta pastoral intitulada Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, D. Pedro apresentava a situação do município de Barra dos Garças, unidade administrativa e territorial que coincidia com o espaço territorial da Prelazia de São Félix, localizada no distrito da cidade. Na região conviviam o prelado de Casaldáliga, posseiros provenientes do Nordeste, diversas aldeias indígenas do Parque do Xingu e os fazendeiros, geralmente sulistas, que investiam na agroindústria local, apoiados pelos militares. No mês de janeiro de 1973, em comunicado à imprensa, a Conferência anunciava que um dos treze pontos de debate de sua Comissão Representativa eram os direitos humanos, cujo objetivo era enfocar o valor cristão dos mesmos. (CNBB, 1973, p. 39)59. Em fevereiro a CEP – Comissão Episcopal de Pastoral60 enviava à CNBB documento intitulado Direitos humanos no Brasil. Nele, a noção do que era o desrespeito aos direitos humanos converge para o sentido mais amplo proposto pela ala engajada do episcopado, fortemente centrado no princípio de justiça social:

Há um acatamento global, um respeito teórico pelos Direitos Humanos. (...)

A condição de marginalização econômica, social, política e cultural de milhões de brasileiros é o aspecto mais monumental de desrespeito dos Direitos Humanos, porque é um aspecto estrutural, que não se refere a casos numerosos mas isolados, atribuíveis a uma determinada conjuntura política. (...) a liberdade de imprensa aqui não significa nada diante de 50 milhões de brasileiros analfabetos. Aqui reside, creio eu, o aspecto mais importante. Subestimá-lo ou esquecê-lo poderia indicar que abordamos o problema ou na perspectiva de uma situação social privilegiada que é a nossa, ou condicionados pelos traumas que nos atingiram mais diretamente.(CNBB, 1973: 283)61 [grifos meus]

15Na passagem acima a frase “a liberdade de imprensa aqui não significa nada diante de 50 milhões de brasileiros analfabetos” sintetiza bem o fato de que havia basicamente duas tendências ao se falar em direitos humanos. Através de um sentido amplo para a ideia de direitos humanos, os bispos ativistas procuraram promover uma agenda abrangente e de forte ligação com os setores populares no que diz respeito às desigualdades sociais e econômicas assim como nas relações do mundo do trabalho. Resta observar se essa tendência progressista se verificou no âmbito dos costumes.

As mobilizações feministas e a Igreja brasileira nos anos 70 e 80: um breve panorama

16Como demonstrado por Landim (1998) em estudo pioneiro sobre a forma organizacional política e não estatal, a nomenclatura utilizada pelas instituições é expressiva de uma história que remonta à década de 1970 (iniciativas como ‘educação de base’, ‘educação popular’, ‘promoção social’). (Landil Apud Lacerda, 2013: 154). Os termos que definem majoritariamente a ação com intenção política organizada fora do Estado (militar) nos anos 1970 ilustram a relevância do ativismo desenvolvido por bispos e outros sacerdotes católicos. Boa parte das pautas progressistas, isto é, voltadas para interesses populares como saúde, educação, salário mínimo eram transmitidas pelos setores engajados da Igreja Católica, muitos deles fortemente ligados aos movimentos da sociedade civil da época.

17Segundo Ana Alice Costa, é possível identificar ao menos três padrões de mobilização política de viés feminista na América Latina: grupos de direitos humanos envolvidos com a luta política no contexto ditatorial; grupos e organizações feministas e “organizações de mulheres urbanas pobres articuladas geralmente através do bairro, associações e federações, em torno de demandas como o aumento do custo de vida, a melhoria do transporte” (Costa, 2005: 17). E as “suas primeiras experiências das CEBs remontam aos anos 1960, no Brasil, em Nísia Floresta, arquidiocese de Natal, e em Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro. (Santos, 2006: 14). É inegável, portanto, a presença histórica do catolicismo progressista na participação e organização popular de agendas de teor sócio-econômico. Esse modelo de evangelização e organização social repousa nas transformações sociais e políticas dos anos sessenta no Brasil.

18Segundo a fundadora do Movimento de Mulheres criado em 8 de março de 1991, na cidade de Altamira, no estado do Pará, neste município “as participantes das CEBs tiveram um importante espaço de reflexão sobre as questões de gênero a partir da Campanha da Fraternidade de 1991, que adotou como tema Mulher e Homem: imagem de Deus.” (Lacerda, 2013: 162). A Campanha, que ocorre em território nacional anualmente, é promovida pela CNBB e foi emblemática do ativismo dos bispos nos temas sociais desde os anos setenta. Com o intuito inicial de promover pressão no modo como a Justiça e polícia locais lidavam com os casos de violência doméstica foi criado na cidade do Pará o Movimento de Mulheres. “O apoio crucial dos religiosos ligados à Prelazia do Xingu ao Movimento de Mulheres, desta forma, consistiu em capacitá-las para a ação “ (Lacerda, 2013: 163).

19Em 1975, a ONU promoveu na Semana Internacional da Mulher foram (19 de junho a 2 de julho) “várias atividades públicas em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, reunindo mulheres interessadas em discutir a condição feminina em nossa sociedade.” (Costa, 2005: 5). “O ano da I Conferência Mundial sobre a Mulher (1975) foi declarado, pelas Nações Unidas, o Ano Internacional da Mulher, o qual deu início à Década da Mulher.” (Novellino, 2006: 6). “Ainda em 1975 é criado o jornal Brasil Mulher, em Londrina, no estado do Paraná, ligado ao Movimento Feminino pela Anistia e publicado por ex-presas políticas.” (Costa, 2005: 5). Em 1978, dois jornais representavam o movimento feminista brasileiro: Nós Mulheres, composto por universitárias e militantes estudantis e o Brasil Mulher. (Costa, 2005.)

20Na década de 1980 consolidava-se a transição para o retorno à ordem democrática no país; em decorrência desse processo, diversos fatores contribuíram para a consolidação e diversificação do engajamento político feminista. Na comunidade católica, porém, o progressismo político do clero foi recrudescido pelo papado de João Paulo II, conservador e crítico da Teologia da Libertação. A Igreja Católica foi perdendo fiéis para outras confissões cristãs protestantes: os pentecostais iniciavam uma escalada de ascensão na sociedade brasileira, o que se verificou nos temas da tradicional Revista Eclesiástica Brasileira (Petrópolis, editora Vozes). Com o fim do regime militar em 1985 houve uma mudança no conjunto diverso de mobilizações em torno das pautas feministas e por isso “esvaziaram-se os grupos formados em torno da bandeira da opressão feminina e ganhou força uma atuação mais especializada, com uma perspectiva mais técnica e profissional.” (Sarti, 2004: 42). O verdadeiro boom de organizações não-estatais eclodido na década de 1980 também causou impacto nas mobilizações das mulheres. “Muitos grupos adquiriram a forma de organizações não-governamentais (ONGs) e buscaram influenciar as políticas públicas em áreas específicas, utilizando-se dos canais institucionais.” (Sarti, 2004: 42). Esse processo consistiu na institucionalização do movimento feminista, com a produção de uma agenda temática diversificada, traduzida em diferentes agendas nas políticas públicas e na profissionalização de muitos movimentos para atender à demanda de converter as questões em assuntos de Estado. Nesse sentido, “no plano governamental, criaram-se conselhos da condição feminina, em todos os níveis, federal, estadual e municipais.” (Sarti, 2004: 42). No âmbito do sistema político-partidário recém-instaurado, o “avanço do movimento fez do eleitorado feminino um alvo do interesse partidário e de seus candidatos, que começaram a incorporar as demandas das mulheres aos seus programas e plataformas eleitorais, a criar Departamentos Femininos dentro das suas estruturas partidárias.” (Timoteo, 2013: 98).

21A década de 1980 trazia a novidade, para os anos subsequentes, de uma variedade ideológica e de tendências políticas no que diz respeito ao engajamento político das mulheres. A agenda feminista diversificou-se tanto quanto as suas frentes de ação, dentro e fora do Estado. A contribuição dos grupos progressistas católicos junto à organização das mulheres concentrou-se no potencial feminino frente aos enfrentamentos necessários para a construção de uma sociedade mais justa, da perspectiva social e econômica. Porém, dos anos noventa em diante não apenas os direitos sociais e econômicos constituiriam o rol de reivindicações das mulheres no mundo político. Temas como divórcio e contraceptivos no decorrer dos anos oitenta e, o aborto nos anos noventa e no decênio seguinte vão colocar parte da agenda feminista em rota de colisão com setores progressistas católicos. É nessa conjuntura que apresento a relação entre a CNBB com o movimento católico feminista CDD.

22A institucionalização trazia discussões para o seio do escopo abrangente do movimento feminista. A atuação junto ao poder político, em convergência com o Estado trazia vantagens reais de negociação e financiamento, por exemplo, mas também colocava em pauta incertezas como a eventual cooptação e submissão frente ao aparelho estatal. “A participação nos conselhos, e em especial, no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), foi uma questão polêmica que incitou os ânimos no VII Encontro Nacional Feminista, realizado em 1985, em Belo Horizonte.” (TIMOTEO, 2013, p. 99). “O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi criado pelo Estado brasileiro em 1985, vinculado ao Ministério da Justiça, para promover políticas que visassem eliminar a discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país.” (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres)1.

O Movimento Católicas pelo Direito de Decidir (CDD)

23O CDD surgiu da primeira organização iniciada nos Estados Unidos em 1970 denominada Catholics For a Free Choice (CFFC). No Brasil a entidade foi fundada em 8 de março de 1993 e propõe “articular as ideias do feminismo com o cristianismo, buscando argumentação teológica consistente e oferecendo a possibilidade de encarar a sexualidade como algo positivo, que pode nos fazer felizes, sem nos sentirmos culpadas.” (CDD)2. Dentre as atividades propostas pela militância estão a articulação com movimentos sociais, entidades de classe, sindicatos e redes municipais, regionais e nacionais através da oferta de assessoria, cursos e debates. Há também o dispositivo chamado Redes Multiplicadoras: são realizadas oficinas em todo país, especialmente no Norte e Nordeste, “com mulheres envolvidas com organizações religiosas e movimentos sociais, sobre os argumentos ético-religiosos favoráveis aos direitos das mulheres. Essas mulheres tornam-se multiplicadoras em suas comunidades e seu trabalho é acompanhado por uma integrante da equipe de Católicas.” (CDD)

24Em 1996 organizou-se a Rede Latino-americana de Católicas pelo Direito de Decidir e depois do encontro realizado em Caxambu, Minas Gerais, foi elaborada uma Carta de Princípios. Sob os lemas “a liberdade de consciência é um valor católico”, “todas as formas de amor são sagradas” e “a proibição do uso de camisinha condena à morte por aids milhões de pessoas”3, atualmente ela conta com grupos constituídos nos seguintes países: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Espanha, El Salvador, Nicarágua, México, Paraguai e Peru, além da organização sediada nos Estados Unidos. No documento a entidade se define como grupo autônomo, estruturado sob a forma de organização não-governamental e afirmam como fundamentos de sua militância:

  • 4 Carta de Princípios da Rede latino-americanas de Católicas pelo Direito de Decidir, disponível em: (...)

El derecho de las mujeres a la autonomía, a decidir sobre su cuerpo y a vivencia placentera de su sexualidad sin ninguna distinción de clase, raza/etnia, credo, edad, orientación sexual e identidad de género. La autoridad moral de las mujeres para tomar decisiones de acuerdo con libertad de conciencia, incluso cuando deciden abortar.(CDD)4

25A entidade se volta para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, por isso a ratificam a autonomia feminina em decidir sobre seus corpos e sexualidade. No centro desse debate encontra-se o tema do aborto; para as militantes do CDD o direito ao aborto constitui elemento crucial para a materialização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Elas inserem esta agenda como item indispensável da luta em nome dos direitos humanos, comprometendo-se a defender todos os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Defendem também a laicidade do Estado como marco essencial para a ordem democrática bem como a erradicação dos crimes de homofobia, feminicídio, misoginia e de violência sexual.

26“A noção de direitos reprodutivos propagou-se no feminismo brasileiro a partir da sessão do Tribunal Internacional de Saúde e Direitos Reprodutivos, no I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, em Amsterdã, em 1984.” (SACVONE, 2008, p. 677). A descriminalização do aborto encontra-se circunscrita no rol destes direitos, que compõem a versão contemporânea dos direitos individuais: o livre agir sobre o próprio corpo, independentemente das crenças religiosas e outros valores tradicionais, mediante a presença de um sistema de saúde que possibilite os meios eficazes e seguros. A defesa do CDD converge para essa perspectiva na qual:

O aborto como questão de direito individual remete a um dos fundamentos do feminismo contemporâneo: o princípio democrático liberal do direito aplicado ao corpo; direito baseado nas idéias de autonomia e liberdade do liberalismo, expresso na máxima feminista “nosso corpo nos pertence”, que se difundiu internacionalmente a partir dos países centrais e marcou as lutas feministas relacionadas à sexualidade, à contracepção e ao aborto. (Scavone, , 2008: 677)

27Sendo assim, mesmo que as militantes afirmem a confissão católica em seu nome, a perspectiva do grupo é completamente distinta daquela encontrada no seio da Igreja Católica. Nesse aspecto elas encontram-se afinadas com o movimento feminista leigo e liberal, calcados num sentido denso e complexo da liberdade individual. Desde fins dos anos oitenta o aborto já havia aparecido enquanto pauta de política pública. Mesmo no espaço da militância institucionalizada a defesa do direito ao aborto já apresentava-se; em 1989 realizou-se o Encontro Nacional dos Direitos da Mulher, organizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a descriminalização do aborto surgia como agenda central. (Scavone, 2008). A partir da década de 1990 diversos profissionais da área de saúde, juristas e parlamentares começaram a estabelecer diálogo com a demanda da militância feminista, tornando-a mais ampla. (Scavone, 2008).

28Na década seguinte o tema do aborto adentra com mais clareza os debates envolvendo agentes. Em 2005 houve a I Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, na qual afirmou-se o Estado laico e recomendou-se a descriminalização do aborto. (Scavone, 2008). A despeito de tímidas iniciativas do governo federal na gestão do governo PT com os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), quando o tema vai para o Congresso a lentidão nos processos e modificação incansável reafirmam a dificuldade na proposição de mudanças efetivas. (Scavone, 2008; Almeida, 2014). Em 2007 o Programa Especial de Planejamento Familiar também trouxe à tona o debate sobre a legalização do aborto. Este programa é constitutivo da Política Nacional de Planejamento Familiar, que atua em diferentes frentes para evitar e conscientizar, dentre outros problemas, a gravidez indesejável. Se destaca pela oferta de diferentes “contraceptivos gratuitos e a venda de anticoncepcionais a preços reduzidos na rede Farmácia Popular”. (Portal Brasil, 2011). O Programa dispõe de ações educativas no Programa Saúde na Escola com a distribuição de preservativos nas escolas.

29A Campanha da Fraternidade (CF) surgiu em 1961, quando “três padres responsáveis pela Cáritas Brasileira idealizaram uma campanha para arrecadar fundos para as atividades assistenciais e promocionais da instituição e torná-la autônoma financeiramente. A atividade foi chamada Campanha da Fraternidade.” (Diocese de Blumenau, 2015). Ela foi realizada pela primeira vez em 1962, na cidade de Natal (RN), “com adesão de outras três dioceses e apoio financeiro de Bispos estadunidenses; em 1963, 16 dioceses do Nordeste aderiram à ideia”. (Diocese de Blumenau, 2015).  Desde então, a CNBB adotou como projeto anual de sua responsabilidade a realização da CF. Na década de 1970, os temas eleitos para a CF passaram a ser escolhidos de modo mais participativo, a partir da votação de representantes dos diversos membros regionais de que se compõem a CNBB. Tal fato permitiu que os temas escolhidos deixassem de ser centrados em temáticas da liturgia e passassem a abordar questões sociais candentes na sociedade.A partir do início dos encontros nacionais sobre CF, em 1971, a escolha de seus temas vem tendo sempre mais ampla participação dos 16 [secretariados] regionais da CNBB que recolhem sugestões das Dioceses e estas das paróquias e comunidades.” (Regional Sul 4 CNBB, 2015)

  • 5 Devido ao recolhimento ordenado pela CNBB logo após a publicidade do vídeo, não pude verificar o ma (...)

30A primeira manifestação pública da CNBB sobre o CDD ocorreu em 3 de março de 2008, através de nota emitida por Dom Geraldo Lyra Rocha, arcebispo de Mariana (MG) e então presidente da Conferência. O vídeo da Campanha da Fraternidade daquele ano, cujo lema era Escolha, pois, a vida e o tema intitulado Fraternidade e defesa da vida, e contou com a participação de uma integrante do CDD, a senhora Dulce Xavier. O objetivo geral desta edição da CF era “levar a Igreja e a sociedade a defender e a promover a vida humana, desde a sua concepção até sua morte natural, compreendida como dom de Deus e corresponsabilidade de todos” (Diocese de Blumenau). O lema previsto para a campanha corrobora o fato de que o progressismo da CNBB se restringia aos assuntos concernentes à desigualdade social e econômica; porém, sua postura com relação à vida se calçava nas noções mais tradicionais da tradição cristã. Por isso a reação dentre os grupos pró-vida da comunidade católica foi tão grande que, para acalmar os ânimos, a produtora lançou uma segunda versão em DVD da Campanha, dessa vez sem a polêmica participação. No vídeo a integrante reafirma a posição do movimento, favorável ao atendimento público hospitalar para os casos de aborto assim como a defesa do uso de métodos contraceptivos na vida sexual5. A nota emitida pela CNBB vem de encontro ao episódio como satisfação aos grupos conservadores dentro da comunidade católica.

Esclarecemos que se trata de uma entidade feminista, constituída no Brasil em 1993, e que atua em articulação e rede com vários parceiros no Brasil e no mundo, em particular com uma organização norte-americana intitulada “Catholics for a Free Choice”. Sobre esta última, a Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos já fez várias declarações, destacando que o grupo tem defendido publicamente o aborto e distorcido o ensinamento católico sobre o respeito e a proteção devidos à vida do nascituro indefeso; é contrário a muitos ensinamentos do Magistério da Igreja; não é uma organização católica e não fala pela Igreja Católica. Essas observações se aplicam, também, ao grupo que atua em nosso país. (...)

A Campanha da Fraternidade deste ano de 2008 reafirma nosso compromisso com a vida, especialmente, com a vida do ser humano mais indefeso, que é a criança no ventre materno, e com a vida da própria gestante. Políticas públicas realmente voltadas à pessoa humana são as que procuram atender às necessidades da mulher grávida, dando-lhe condições para ter e a criar bem os seus filhos, e não para abortá-los.(CNBB, 2008)6

31Em 2009, a CNBB reafirmaria seu compromisso com os grupos contrários ao aborto. Durante a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH – 3), a entidade enfrentou as soluções pensadas para o aborto naquele que era o programa de diretrizes para as políticas de Estado em direitos humanos no Brasil. O plano seguia a orientação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do governo Lula, isto é, de tratar o aborto como um problema de saúde pública e por isso pedia “a revisão da legislação punitiva a fim de ampliar as perspectivas sobre os direitos das mulheres.” (LUNA, 2014, p. 328). “No PNDH-3 (Decreto no 7.037, de 21 de dezembro de 2009) o aborto aparecia nas seguintes seções: primeiramente, no Eixo Orientador III “Universalizar direitos em um contexto de desigualdades”, Diretriz 9 “Combate às desigualdades estruturais, Objetivo estratégico III: Garantia dos direitos das mulheres para o estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania.” (Luna, 2014: 239).

  • 7 LUNA, Naara. A polêmica do aborto e o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Da (...)
  • 8 “autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas extraídas de embriões restantes de fer (...)

32Naara Luna realizou uma investigação7 acerca da cobertura midiática do episódio; acompanhou a cobertura do jornal O Globo para o tema e destaca que “o jurista Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho e membro do Conselho Nacional de Justiça, escreveu o artigo Direitos desumanos na página de opinião do jornal”. (Luna, 2014: 242). Ele também havia atuado “como advogado da CNBB na Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510-0 contra o artigo 5 da Lei de Biossegurança8”. (Luna, 2014, 242). Não apenas por meios jurídicos a CNBB buscava afirmar seus valores políticos; justamente por seu papel na redemocratização, diversos membros do episcopado brasileiro possuíam vínculos com entidades civis e políticos. “Em 30 de janeiro, é veiculada a notícia de que o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ia se reunir com a CNBB, entidade que fez as principais críticas ao item que trata do aborto.” (Luna, 2014: 243). Em 2010 houve outra tensão entre CDD e CNBB. Dessa vez o conflito era destinado à Presidência e Comissão Representativa do Regional Sul I da CNBB pela campanha contrária feita pela sua Comissão em Defesa da Vida à campanha presidencial de Dilma Roussef para a sucessão do presidente Lula. O motivo da declaração contrária à candidata repousava essencialmente na puta do aborto; no documento organizado pelo Regional I conta:

RECOMENDAMOS encarecidamente a todos os cidadãos e cidadãs brasileiros e brasileiras, em consonância com o art. 5º da Constituição Federal, que defende a inviolabilidade da vida humana e, conforme o Pacto de S. José da Costa Rica, desde a concepção, independentemente de sua convicções ideológicas ou religiosas, que, nas próximas eleições, deem seu voto somente a candidatos ou candidatas e partidos contrários à descriminalizacão do aborto. [grifos do documento] (Regional Sul I, 2010)9

33Em resposta, o CDD publicou declaração condenando a postura da seção da CNBB Sul I. No documento da entidade feminista é reconhecido o papel da CNBB em lutas políticas históricas do país, o que causa ainda mais estranhamento e repúdio por parte do CDD.

Como católicas comprometidas com a justiça social, lamentamos profundamente que a CNBB não faça notas públicas para orientar a população católica a votar em candidatos reconhecidamente favoráveis às lutas sociais, à erradicação da miséria e da violência e à implementação de políticas públicas no Brasil que resolvam a injusta distribuição de renda de nosso país.

A Igreja católica na qual fomos formadas foi, em tempos de ditadura militar, no Brasil a voz daqueles que não têm voz, mas hoje cala-se vergonhosamente frente aos problemas mais graves do país, insistindo apenas na condenação dos direitos humanos das mulheres e de pessoas homossexuais, bissexuais, de travestis e transexuais. (CDD, 2010)

Conclusão

34O conflito entre CDD e CNBB nos permite afirmar que o movimento católico progressista presente nas comunidades eclesiais de base e nas comissões pastorais produziu ideias e modos de engajamento político que transcendem a própria Igreja. Na passagem anterior, as Católicas pelo Direito de Decidir afirmam sua filiação à militância dos tempos de ditadura, em nome “daqueles que não têm voz”, numa alusão à opção preferencial pelos pobres que regeu a tanto a Teologia da Libertação quanto o ativismo de bispos e demais sacerdotes naquele período. Nos anos 1990, diversas minorias se organizaram pela conquista de direitos em organizações não governamentais e nesse contexto visões de mundo bastante distintas puderam se aproximar. O CDD elucida esse processo: de confissão católica, o movimento produz uma leitura da liturgia católica que em muito deve ao ativismo dos anos 1970, uma vez que defende a realização da justiça social. Esse é ponto que a aproxima do progressismo político da CNBB no contexto da ditadura; a luta em nome dos pobres e marginalizados da sociedade brasileira, em busca de efetiva promoção social. Porém, o grupo traz para o seio de suas atividades uma leitura feminista contemporânea de viés liberal, dando centralidade ao tema dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Sua visão sobre o tema do aborto converge com aquela produzida na administração do Partido dos Trabalhadores e é nesse aspecto que o grupo desperta desafeto com a CNBB.

35Tanto CNBB quanto CDD defendem que o Estado brasileiro produza medidas concretas para a redução da desigualdade social, são favoráveis às políticas distributivas, ao sistema público de saúde e de educação. Ou seja, no que diz respeito às pautas políticas centradas no tema da pobreza e da assistência social, o CDD segue a tradição inaugurada pela Conferência. Nesse tema a militância de ambas entidades guardam profundas semelhanças; porém, em se tratando da ideia de direitos individuais CNBB e CDD possuem profundas divergências. A Conferência dos Bispos do Brasil mantém-se atrelada à visão de mundo tradicional na qual a vida começa antes da formação do feto, e que cabe à Igreja a defesa e proteção do nascituro. Ao passo que a CDD traz consigo o repertório feminista liberal, que vê na escolha da gravidez um direito que toda mulher deve ter sobre seu próprio corpo. A CDD, por não abrir mão de sua confissão católica, força algum tipo de debate com a ala conservadora no que diz respeito ao tema do aborto.

O feminismo tem centrado sua luta na garantia da aplicação dessa lei – especialmente nos interlúdios da batalha maior pela descriminalização e legalização – e buscado ampliá-la para outros casos. Destaca-se o grupo das Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), pois constitui uma oposição importante no seio da própria Igreja Católica, a qual tem sido tradicionalmente uma força importante contra a legalização do aborto no País. Cabe lembrar que a ameaça da retirada dos dispositivos legais existentes paira até o presente no discurso conservador, que também dificulta a sua ampliação (Scavone : 678)

36Busquei definir as linhas de atuação do ativismo político de parte dos bispos da CNBB de modo a não deixar entender que a posição contrária acerca do aborto é suficiente para negar-lhes qualquer viés progressista. A despeito do papel essencial dessas figuras na germinação de movimentos sociais de contestação da ordem política e econômica, o episcopado brasileiro encontra-se muito distante de uma liberalização dos costumes e visões de mundo tradicionais. A querela exposta no decorrer deste artigo é elucidativa dos limites da participação de instituições tradicionais e seculares na dinamização e inclusão de novas demandas nascentes na sociedade. Por fim, vale ressaltar que ambas entidades produzem uma retórica e militância em defesa dos direitos humanos no cenário nacional e fundamentam seu posicionamento antagônico no mesmo princípio de afirmação e proteção dos mesmos. Por parte da CNBB, trata-se de defender o direito à vida, que é direito humano constitutivo do nascituro, que representaria mais uma vida concedida por Deus. Já a CDD afirma que o direito ao aborto é direito individual de toda mulher e, portanto, também se inclui no rol dos direitos humanos. No primeiro caso, o direito humano é do nascituro e no segundo é da mulher.

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Notas

1 Sítio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, disponível em: http://www.spm.gov.br/assuntos/conselho (acessado em 04 de abril de 2016)

2 Página virtual do MCpDD. Disponível em: http://catolicas.org.br/institucional-2/historico/

3 Mensagens disponíveis na página da Rede latino-americana CDD. Ver mais em: http://www.catolicasporelderechoadecidir.net/inicio.php (acessado em 04 de abril de 2016)

4 Carta de Princípios da Rede latino-americanas de Católicas pelo Direito de Decidir, disponível em: http://www.catolicas.org.br/Carta-Principios-Rede-CDDLA.pdf (acessado em 04 de abril de 2016)

5 Devido ao recolhimento ordenado pela CNBB logo após a publicidade do vídeo, não pude verificar o material. As informações que retiro vêm de uma página pró-vida profundamente contrária ao CDD. No entanto, as informações de lá provenientes que trago para este artigo convergem com o conteúdo da nota emitida pela CNBB no mesmo ano. Disponível em: http://www.providaanapolis.org.br/index.php/todos-os-artigos/item/146-cat%C3%B3licas-pelo-direito-de-decidir (acessado em 04 de abril de 2017).

6 Nota da CNBB sobre a ONG Católicas pelo Direito de Decidir – CDD. Disponível em: http://www.veritatis.com.br/nota-da-cnbb-sobre-a-ong-catolicas-pelo-direito-de-decidir-cdd/ (acessado em 04 de abril de 2017)

7 LUNA, Naara. A polêmica do aborto e o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Dados – Revista de Ciências Sociais, volume 57, no 1, 2014.

8 “autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias humanas extraídas de embriões restantes de fertilização in vitro.” (Luna, 2014, pp. 242-243).

9 Documento disponível na íntegra em: http://www.diocesedeassis.org/index.php?option=com%20_content&view=article&id=169:apelo-a-todos-os-brasileiros (acessado em 4 de abril de 2017)

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Para citar este artículo

Referencia electrónica

Naiara Alves  da Silva, «A (difícil) relação do movimento Católicas pelo Direito de Decidir e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: reflexões em torno do caso da Campanha da Fraternidade de 2008»Amerika [En línea], 16 | 2017, Publicado el 03 julio 2017, consultado el 04 diciembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/amerika/8083; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/amerika.8083

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Autor

Naiara Alves  da Silva

Universidade Federal Fluminense (UFF)
doutoranda em Ciência Política naiara.alves@ymail.com

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