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Dossier "Coup d'état en Argentine et Guerre des Malouines"
Coup d'État : militaires, résistants et artistes

O jogo da escrita em Lo imborrable de Juan José Saer : da ditadura à poética

Raquel Alves Mota

Résumés

É central, em Lo imborrable (1993), a problemática dos anos de ditadura na Argentina, tema desenvolvido por meio da discussão estética do livro La brisa en el trigo, de autoria da personagem Walter Bueno. A focalização de Lo imborrable se estaciona em Tomatis – personagem que percorre grande parte da “saga saeriana” −, no período de sua vida em que saía da depressão e do alcoolismo, males que o enclausuraram após a morte de sua mãe e do desaparecimento de uma jovem revolucionaria, “la Tacuara”. Na época de publicação de La brisa en el trigo, Tomatis desafiara o governo militar − que financiou a propagação desse livro −, publicando uma crítica ferrenha ao realismo de Walter Bueno ou ao seu despreparo na condução da trama e na execução estética da obra. É por meio dessa discussão poética que se descobre a lucidez de Saer na defesa da escrita como uma arma “imborrable” de resistência.

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Palavras chaves:

ditadura, escrita, poética, resistência, Saer

Géographique :

Argentina, Buenos Aires, Rosário
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Texte intégral

1Em Lo imborrable (1993), Tomatis é a personagem principal ; a estratégia da narração é surpreendente : a personagem, em focalização interna, mimetiza a própria função do narrador heterodiegético, nos movimentos de aproximação e distanciamento daquilo que é relatado. Esse jogo é articulado pela narração em primeira pessoa ; porém, a preferência pelo distanciamento dos acontecimentos projeta quase um narrador heterodiegético. A focalização de Lo imborrable, então, se projeta em Tomatis, no período de sua vida em que saía da depressão e do alcoolismo, males que o enclausuraram após a morte de sua mãe e do desaparecimento de uma jovem revolucionaria, “la Tacuara”. A história é um prosseguimento de Glosa (1985) :

[l]a novela es el relato de Tomatis acerca de los primeros días de su recuperación tras el pozo depresivo que lo afectaba en Glosa y del que va logrando emerger a fuerza de higiene, abstinencia de alcohol y escritura de sonetos ; durante el curso entero de la novela, el narrador lanza todo el tiempo y a propósito de cualquier banalidad cotidiana, como un automatismo coloquial, una apuesta repetida que parece el desafío suicida del delirio militarista : “Que me cuelguen si…”, “que me maten si…”, “que me fusilen si...” (la gramática de la frase es parienta cercana de una consigna tipo del acionalismo armado : “Patria o muerte”, “Perón o muerte”) (18, 31, 37). Lo más íntimo de la vida de Tomatis – nos entera su propia voz - ha sido violentado definitivamente por la dictadura : se ha divorciado y sufre una depresión severa porque hace siete meses su esposa no ha querido refugiar en su casa a “la Tacuara”, una joven revolucionaria, vecina de años, ahora desaparecida. (Dalmaroni, 2008, p. 6)

2É central, em Lo imborrable, essa problemática dos anos de ditadura na Argentina, tema desenvolvido por meio da discussão estética do livro La brisa en el trigo, de Walter Bueno, perpetrada, principalmente, por Tomatis. A importância dessa discussão é o retorno da questão do realismo, por intermédio da problemática da ficção.

3No início de Lo imborrable, há o encontro de Tomatis com o editor Alfonso de Bizancio : ele é convidado a coordenar uma revista quadrimestral financiada pela Bizancio Libros. O interesse de Alfonso por Tomatis vem desde a época de projeção de La brisa en el trigo. Nesse período, Tomatis desafiara o governo militar − que financiava a propagação desse livro −, publicando uma crítica ferrenha ao livro de autoria de Walter Bueno. Ao final de Lo imborrable é desvencilhado o porquê de Alfonso ter recebido favoravelmente o ensaio de Tomatis. La brisa en el trigo tem como enredo a história de um trio amoroso (trio que se corresponderia com as personagens Alfonso, sua mulher e Walter Bueno) : uma menção quase direta ao envolvimento da mulher de Alfonso com Walter Bueno. Alfonso alimenta ódio por Walter Bueno, porque, após esses acontecimentos, sua mulher se suicida, em decorrência dos desencantos desse relacionamento extraconjugal.

4Quando do primeiro encontro de Alfonso com Tomatis, o escritor e propagandista da ditadura, Walter Bueno, já estava morto. Alfonso sempre se remete à crítica publicada por Tomatis por ocasião do lançamento do livro de Bueno e, também, articula seu próprio juízo sobre La brisa en el trigo, sem nunca, é claro, revelar a remissão autobiográfica da história ou o envolvimento de sua mulher com o autor desse livro. Tomatis, a princípio, desconhece esse teor autobiográfico, mas não economiza críticas ao realismo de Walter Bueno ou ao seu despreparo na condução da trama e na execução estética da obra.

5Tomatis, no retorno às suas deambulações pela cidade – depois de anos recluso em casa, devido à depressão – é, então, abordado por Alfonso de Bizancio, dono da Bizancio Libros. A proposta de emprego advinha da declarada admiração de Alfonso por Tomatis, principalmente, em razão do texto que este escrevera em crítica ao Best-seller de Walter Bueno, na época de publicação. Alfonso projetava Tomatis como diretor da revista literária da Bizancio Libros ; uma forma, também, de trazer notoriedade para as publicações que fossem resenhadas por ele. Alfonso lhe apresenta sua assistente, Vilma Lupo ; os dois buscam convencer Tomatis dos benefícios que as duas partes desfrutariam com esse acordo comercial. Eles entregam a Tomatis uma pasta amarela com todos os documentos que descrevem o projeto da empresa : o reagrupamento das forças culturais dispersas pela ditadura, com a criação de uma revista quadrimestral. Posteriormente, Alfonso entrega a Tomatis um exemplar do livro de Walter Bueno, com suas anotações críticas : várias observações que revelam a intenção de desmantelar os argumentos do livro. As anotações de Alfonso confirmam sua execração por La brisa en el trigo e sua admiração pelo artigo que Tomatis publicara contra o best-seller. É por meio dessas anotações de Alfonso e da descrição das concepções estéticas de Walter Bueno e de seu pai, que se percebe como o romance desenvolve o argumento contra, principalmente, um tipo de realismo. Uma parte significativa desse argumento está embasada, então, na contraposição da crítica de Tomatis e a de Alfonso sobre o livro de Walter Bueno. A partir da discussão sobre o realismo emerge o problema da experiência, de sua representação e de como a escrita perpetua todo esse dilema.

6O artigo de Tomatis, publicado no suplemento literário de La Región, tinha, além, de uma preocupação literária, um teor político : « [...] [e]l libro es tan insignificante que no hubiese valido la pena ocuparse de él, si Waltercito no se hubiese convertido en el escritor oficial y, en su trabajo de periodista, en propagandista de la dictadura ». A crítica de Tomatis nasce desse revanchismo contra o sistema, que podia transformar um livro insignificante em um best-seller. Quanto ao teor literário, Tomatis destacava que La brisa en el trigo carecia de uma estrutura lógica, já que « [...] [l]a idea que Walter Bueno se forja de la novela y el camino elegido por toda novela lograda son divergentes ». É interessante percorrer, aqui, essas duas ideias de Walter Bueno : aquilo que ele defendia como teoria do romance e sua práxis ou aquilo que, realmente, executou no best-seller. Tomatis contribui decisivamente para essa tarefa, com uma descrição dos ideais de Walter Bueno, contrapondo-os aos de Bueno pai. Em se tratando do artigo que publica contra La brisa en el trigo, poucos são os pontos expostos em Lo imborrable e é com base nas anotações críticas de Alfonso que Tomatis expõe mais claramente sua crítica ao livro de Walter Bueno. A seguir, percorre-se o desenvolvimento dessa crítica de Tomatis.

7Retoma-se, então, primeiramente, essa divergência apontada por Tomatis entre os ideais e a práxis de Walter Bueno. Aquilo que o autor de La brisa en el trigo defendia conceitualmente não foi seguido no desenvolvimento estrutural do livro. Há certa dificuldade em se averiguar a veracidade dessa crítica, porque as análises de Tomatis se centram, quase que exclusivamente, nos juízos críticos que os outros personagens elaboraram sobre esse livro. Pouco é revelado a respeito do pensamento estético de Walter Bueno – a não ser sua filiação à perspectiva de Bueno pai – e um pouco mais daquilo que ele realiza por intermédio de La brisa en el trigo. A fala de Tomatis – citada anteriormente – reflete mais a urgência do discurso metaficcional ou a defesa desse argumento no interior do livro. É como se Saer desvelasse a estrutura de seus romances, defendendo que a teoria sustenta a prática da escrita ou que a primeira invade a própria trama, fazendo-se elemento da história contada. Tomatis, então, defende o próprio conceito de romance e, concomitantemente, alavanca uma crítica pujante contra La brisa en el trigo : a incapacidade de se sustentar como romance. Comprova-se essa falta de rigor formal quando Tomatis classifica o livro de Walter Bueno de insignificante.

8Bueno pai promulgava que : « [...] [r]epresentar la realidad tal cual es resulta tan difícil, ¿qué necesidad hay de deformarla ? ». Percebemos que o realismo estético de Bueno pai é uma ingênua ideia de mimesis, com a defesa da relação direta que se estabelece entre o mundo e sua representação. Na verdade, nos Bueno, a própria ideia de mimesis é solapada pela busca de coincidência. A perspectiva estética de Bueno, pai, era de identificação ; a obra deveria conformar-se à realidade ; pensamento que defendia a consubstanciação entre representado e representação. A obra estaria completa quando houvesse correspondência direta entre os dois vetores. A perfeição não era medida pela mera sujeição à realidade, mas pelo apuro da obra, por meio de uma interlocução de espelhamento em que vigorasse o ideal do artista. Segundo Tomatis, a perspectiva estética de Bueno pai explicava, hereditariamente, as deformidades representativas do livro de Walter Bueno. A mediocridade estética apresentada em La brisa en el trigo se filia ao mesmo engano de Bueno pai em relação ao realismo, como podemos observar na citação seguinte, em que se discute a estética desse último :

[l]os pintores de la ciudad contaban de él que una vez pintó su propio jardín, en el que había canteros, bancos y un sauce y que después de haber estudiado el cuadro durante algunas semanas, porque había algo que no terminaba de convencerlo, decidió cambiar el color de uno de los bancos – de verde, como estaba pintado en el jardín y como él lo había reproducido en el cuadro, lo transformó en ocre, pero como había algo que no lo convencía del todo todavía cuando comparaba el cuadro con el jardín, un domingo a la mañana salió con un tarro de pintura al jardín y pintó el banco de ocre. Según los pintores – fuente, a decir verdad, de lo más sospechosa – si los bancos pintados de ocre no le disgustaban, el cuadro no le parecía terminado todavía, y después de estudiarlo con minucia, de sopesar día y noche cada uno de sus detalles, llegó a la conclusión de que el sauce, que aparecía en el centro del cuadro, ocupaba demasiado lugar, aplastando el resto y creando una simetría artificial entre las dos mitades de la tela, de modo que después de muchas cavilaciones decidió que había que borrar el árbol y dejar en su lugar cielo abierto y un horizonte de vegetación en el fondo ; se puso manos a la obra y por fin, según los pintores, se sintió realmente satisfecho, así que al día siguiente se despertó con la convicción íntima de que el cuadro estaba terminado, y sin la menor vacilación salió al jardín y arrancó el árbol. (Saer, 1993, p. 11)

9Essa necessidade de correspondência direta é, também, perceptível nos comentários de Alfonso de Bizancio sobre La brisa en el trigo. Alfonso repete, várias vezes, uma crítica ingênua sobre o título do livro :

[...] – [c]ómo va a ponerle a una novela La brisa en el trigo si en el pueblo donde dice que pasa nunca hubo trigo. Una de dos, si en la novela hay trigo, no es ese pueblo. Y si el pueblo es ése, no debería haber trigo – dice Alfonso. (Saer, 1993, FFp. 9)

10A mesma “simetria artificial” que Bueno pai buscava reproduzir é requisitada por Alfonso, quando desaprova o título do livro. É o que Dalmaroni pontua no texto « Cinco razones sobre Saer » (2011) : a relação direta entre as duas concepções estéticas. Bueno pai deforma o real, para sustentar a correspondência, ao mesmo tempo em que Alfonso requer que o título de La brisa en el trigo fosse mudado, caso se confirmasse a referência a uma cidade que não produzisse trigo. As anotações de Alfonso, no livro entregue a Tomatis, também confirmam o vínculo entre essas perspectivas estéticas :

[...] [e]n repetidas ocasiones, el autor se toma sin el menor tapujo toda clase de libertades en lo relativo al clima, la fauna, la flora y las costumbres de la zona, que evidencian un desconocimiento flagrante de los mismos. ¿Dónde va a parar el pretendido realismo tan mentado por la crítica académica u oficial ? Tal vez en la procacidad a la moda que so pretexto de sensualismo, linda con la pornografía. Hay que hacer notar también que la heroína, se anda paseando con hilo de coser en el bolsillo, para poder enhebrar en el mes de diciembre, flores de paraíso que brotan de los eucaliptus… (Saer, 1993, p. 59)

11As concepções representacionais de Walter Bueno são averiguáveis, principalmente, por intermédio da crítica de Tomatis e das razões que o levaram a escrever o artigo contra La brisa en el trigo. Essa personagem afirma que :

[...] publicó su famosa novela, la brisa en el trigo, una inepcia que, gracias a la propaganda televisiva, se transformó en el best-seller de la década – y gracias también, hay que aclararlo, al argumento de la novela. (Saer, 1993, p. 9)

12A primeira crítica é aguda, invalida a capacidade de articulação do autor e, também, a estrutura do texto : o livro se sustenta apenas em função da propagação midiática. O tornar-se um best-seller é também justificado pelo argumento do libro : « [...] cuenta las aventuras amorosas de un joven maestro de escuela, en un pueblo de la llanura, con una mujer casada ». Tomatis centraliza sua crítica principalmente em função do conluio de Walter Bueno com os militares. Pouco é falado sobre a estrutura de La brisa en el trigo ; em se tratando do argumento do livro, outra crítica é desferida :

[...] Walter Bueno pretendía escribir para el hombre común, pero sus lugares comunes se dirigían a lo más común que tiene el hombre común, en tanto que lo que él llamaba por televisión los intelectualoides de provincia […] escriben justamente para lo que el hombre común tiene de secreto. (Saer, 1993, p. 10)

13A crítica de Tomatis centra-se na incapacidade de La brisa en el trigo de desenvolver o argumento ou a própria trama. A história é bem típica – universal –, razão pela qual houve grande aceitação desse livro ; por outro lado, não há aprofundamento : o conflito permanece nos lugares comuns. Em contrapartida, Tomatis celebra o engenho sobre os segredos do homem comum ; é na relação com as particularidades que se consegue o desenvolvimento da trama. Posteriormente, essa personagem associa essa dificuldade artística de Walter Bueno com a de seu pai, quando renegava os movimentos artísticos abstratos. Havia, nos Bueno, essa recusa pelo manuseio mais detalhado do objeto artístico, pelo apuro estético. Essa carência é cobrada por Tomatis que, a todo o momento, desfere sua crítica, principalmente quanto à relação de Walter Bueno com os militares. Bueno pai, apesar do seu apreço por uma realidade espelhar, era celebrado por manter um modo de vida modesto, não afeito ao compadrio. Esse conflito relembra o de La grande (2005) : em ambos os romances, percebemos afinidades estéticas entre pai e filho e, por outro lado, os filhos empenhados em tirar proveito de conluios com militares.

14Tomatis recebe um exemplar de La brisa en el trigo – com anotações críticas de Alfonso –, no segundo encontro que tem com o famoso Bizancio. Depois de muito resistir − devido à insignificância atribuída por Tomatis ao livro de Walter Bueno −, ele o folheia e lê as observações nas margens do livro. Tomatis está em casa e reflete sobre a crítica de Alfonso e percebe, também, a relação autobiográfica do livro. As observações de Alfonso centravam-se na falta de representatividade do livro ou nas incoerências da narrativa em relação ao espaço representado. A proposta de Alfonso era de que Tomatis mostrasse essas dissidências realistas em La brisa en el trigo. Tomatis, como que entregue ao dilema – aceitar ou não o cargo na Bizancio Libros −, reflete sobre os seus próprios pressupostos ficcionais. Os questionamentos dessa personagem eclodem na confirmação da estreiteza dos argumentos críticos de Alfonso, contribuindo para agravar a relutância em se aliar a tal empresa. A proposta de Alfonso incumbia Tomatis de escrever um artigo − como primeira tarefa – segundo os ideais de Alfonso, defendidos nas observações rascunhadas nas margens de La brisa en el trigo. A perspectiva poética de Tomatis ou o seu pensamento sobre a representação dissemina-se por vários romances nos quais ele é personagem. Em Lo imborrable, Tomatis revela um pouco de sua convicção estética, no momento em que discute o platonismo ou a relação entre representação, realidade e idealidade, nestes termos :

[p]aso las yemas de los dedos por la superficie lisa de la imagen impresa en el papel satinado del prospecto, y después, con el sentimiento de estar realizando un acto vagamente clandestino, me inclino un poco hacia adelante y, estirando el brazo, hago deslizar las yemas por la madera barnizada de la cama, y aunque la sensación difiere de la que me ha dejado la fotografía no es, a pesar de su evidente rugosidad, más convincente que la primera, en lo relativo a un supuesto aumento de realidad que debiera darse por probado. Una tercera cama, modelo inquebrantable de las dos e inaccesible a los sentidos, me viene a la memoria, pero la variedad sin medida de sus múltiples copias con su procesión efímera de madera, hierro, telas, piedra, plumas, lana, tierra fría, apareciendo en mi mente con simultaneidad vertiginosa, barre en un instante la superstición del modelo único y la arrumba en el desván de lo irrazonable. (Saer, 1993, p. 93)

15Tomatis destaca a singularidade do acontecer, radicalizando a relação entre modelo e representação. Há quase uma negativa da preexistência de uma das partes ou o próprio esvaziamento do conceito de representação e, por tabela, de modelo. A incapacidade de se alcançar a ideia faz com que a projeção das múltiplas cópias adquira autonomia frente ao primeiro exemplar. Nesse esquema, a Arte não está subjugada ao modelo, porque Tomatis defende que a própria vida pode imitar a Arte. Essa concepção é contrária ao ideal realista de Alfonso e da companhia Bizancio ; como também, ao gesto de insignificância representativa, como é definido por Tomatis La brisa en el trigo. É interessante que Bueno pai forçou essa correspondência quando arrancou a árvore do jardim, para que seu quadro pudesse refletir fielmente um ideal. Nos três – em Alfonso e nos Bueno –, percebe-se o apreço por uma concepção de realismo que cultiva o espelhamento. Em Tomatis, por seu turno, observa-se a defesa de que a experiência encadeia a multiplicidade de apreensão das coisas ou que o próprio modelo esteja em um constante processo de se mostrar, de se revelar.

16É interessante que o exame de Tomatis – descrito na citação anterior – se inicia na representação e é definido como um ato clandestino. A personagem sente a necessidade de ultrapassar os limites da foto, de sentir as rugosidades daquilo que está incrustado no papel. Apenas nesse ato, já é possível perceber uma concepção diferente de Arte : uma possibilidade de atualização da própria experiência. Quando Tomatis passa para o exame da própria coisa, ele percebe as sinuosidades em sua forma e pensa na impossibilidade que uma ideia tem de condensar essa multiplicidade da apresentação do mundo. É uma releitura do platonismo, a defesa de que atingimos apenas uma parcela das coisas e, dessa forma, é difícil circundá-la e representá-la em uma ideia. Tomatis defende o modelo como uma eterna variável, em função da própria impossibilidade de sua reprodução. Esse pensamento é um inveterado movimento contra o realismo – entendido como reflexo da realidade –, contra a ideia de que seja possível reduzir as coisas a conceitos fechados. Não há, então, como cessar o movimento da experiência ou coibir as transformações de paradigma das ideias e da percepção do mundo ; tudo se mostra em função da própria relação vidente-visível.

17Essa postura de Tomatis em relação ao esquema – representação, mundo e conceito – relembra o pensamento de Merleau-Ponty (2012) sobre a experiência, sua concepção de percepção. O ativo vidente-visível no filósofo retrata a posição da personagem de Saer, a defesa de que não é possível congelar o movimento da experiência. Merleau-Ponty mostra como a experiência é ativa, tanto no vidente como no visível, ou que não há polarização entre esses dois campos, mas intercâmbios múltiplos de funções. É a comprovação do movimento incessante ou da positividade da experiência que, iterativamente, se constrói e ativa uma nova percepção das coisas. O visível não é dado como coisa terminada, mas está na interdependência com o invisível, ou com aquilo que ainda não foi revelado. Essa proeminência da experiência é que inviabiliza a defesa do realismo esquemático ou reducionista, da pré-constituição do mundo ou da crença na existência de um modelo único a ser aplicado. A manifestação das coisas projeta, então, um mundo em movimento, não cerceado por conceitos.

18Esse é o esquema que Saer apura em seus romances : o rigor estético contribui para que a relação minuciosa com a descrição do espaço não penda para o realismo de identificação. É, mesmo, uma investida contra esse pensamento, porque a relação vidente-visível se descobre como inesgotável : o contato é mantido pela incapacidade de uma das partes se exaurir na experiência. Esse ajuste é mantido, então, pela copiosa manifestação das coisas e o pendor estético significa o resgate da narração para o ambiente do próprio texto. Não podendo cessar a variabilidade de manifestação das coisas, o texto se estende sobre si mesmo, como forma de legibilidade.

19Lo imborrable finaliza sem revelar, peremptoriamente, a decisão de Tomatis a respeito do cargo na Bizancio Libros. Na noite anterior à reunião com a cúpula da empresa, essa personagem é sacudida pela indecisão e pelo horror de se aliar a esses ideais realistas. Tomatis analisa os papéis da Bizancio Libros e, em seguida, copia um soneto com o título The Black Hole. Esse poema representa o sentimento de apreensão que lhe acomete : é como se um buraco negro se aproximasse da personagem. Depois de se deitar e no antevir do sono, Tomatis sente como se Bueno pai estivesse, naquele momento, esculpindo-lhe uma estátua. Um dos ofícios do pai de Walter Bueno era esculpir em bronze e em mármore : pelas praças, encontravam-se suas obras em bronze e, nos cemitérios, seus trabalhos em mármore. Nesse transe, Tomatis busca atrair a atenção de Bueno pai ou se esquivar da obra que estava sendo esculpida. Alheio ao discurso de Tomatis, Bueno pai prosseguia seu trabalho, até o momento em que Tomatis é abstraído para outro lugar : imobilizado em uma cama, ele sente a aproximação do verdugo. A luz da manhã o devolve ao espaço de sua cama, despertando-o de toda essa apreensão.

20Tomatis se dirige ao Salón Capri, ambiente do hotel onde acontecia o evento da Bizancio Libros. No encontro com Alfonso e Vilma − a cúpula da empresa −, Tomatis compara o evento com uma festa de casamento, devido à pompa dispensada à sua organização. Alfonso questiona quem seria o noivo, Tomatis não responde, mas percebe Vilma como a noiva. Tomatis se esquivou da bebida alcoólica, nos encontros anteriores, por estar em processo de recuperação da dependência. No final do romance, a última fala é a de Tomatis, que recusa água e pede uma “bebida mais forte”. O romance deixa em suspensão a decisão de Tomatis, mas sinaliza, nesse gesto, uma mudança de rumo. Esse ingresso de Tomatis na sociedade pode significar a concretização dos prelúdios dos sonhos da noite anterior ou uma postura de revanchismo contra todo o sistema que, segundo ele, transformava as pessoas em répteis, incapazes de voar :

[...] Lo imborrable designa simultáneamente la cristalización de la negatividad del terror de la dictadura en algo positivo : un proceso de escritura. Además, se plantean en ella cuestiones como el rechazo de la literatura como mercancía o la ironía contra los escritores “consagrados”. (Logie, 2013, p. 24)

21A técnica realista saeriana ultrapassa a descrição meticulosa do mundo, porque, nesse gesto, deformam-se as coisas de forma tal que a narração evade para a observação do seu próprio dilema estrutural :

[...] aunque pudiera parecer que se trata de una técnica realista, sucede lo contrario, porque la descripción reiterativa, compulsiva, significa la crisis a la vez epistemológica y representacional ; por un lado, lo real deja de ser transparente, por el otro se revela la contingencia del lenguaje. (Perkowska, 2013, p. 179)

22Essa é a questão fulcral do realismo de Saer : sublinha-se a constante distância daquilo que se descreve, por intermédio da própria impossibilidade de se delimitar as coisas pela linguagem. Não se observa, portanto, o acabamento das coisas e a subsequente descrição de seu contorno, mas uma relação dinâmica com o mundo em transformação. Essa estrutura privilegia o movimento, a volatilidade de apresentação das coisas, e é a partir disso que a narração se volta sobre si mesma, mirando-se na própria linguagem. O autotematismo saeriano eclode nessa insistência da narração de suplantar a impossibilidade de se apreender o mundo ; é a reação da linguagem que se revolve, mostrando a sua contingência.

23Conclui-se que Lo imborrable conta uma história da escrita, da resistência que esse gesto pode significar. A única arma de que Tomatis pôde lançar mão contra as impropriedades do regime militar foi o texto que escreveu contra o livro de Walter Bueno. Após esse gesto, a cúpula da Bizancio Libros o buscava para comandar um novo rearranjo das forças culturais do país. É um novo projeto de escrita, uma democracia das letras, baseada na distribuição e circulação de grandes obras. Comprovando essa tese, tem-se o que Saer diz sobre o título desse seu romance :

[c]uando en 1993 se le preguntó “ ¿Qué es `lo imborrable´ ?”, Saer respondió asertivamente : “Lo imborrable es lo escrito. Eso que ha sido escrito” (Speranza, 1995 : 155). Como se sabe, Saer usaba la máquina de escribir casi exclusivamente para pasar en limpio. En cambio, escribía a mano, en cuadernos, con bolígrafos de tintas de varios colores. Se recordará seguramente el final de aquella entrevista publicada por primera vez en 1981, cuando Gerard de Cortanze le preguntó “qué lazos establece entre el cuerpo y lo escrito”. Saer respondió : “Escribo a mano”. Y agregó luego una de sus minuciosas descripciones, narcótica y lúcida a la vez, una microfísica de la escritura como un trance del cuerpo y como “traspaso” entre los cuerpos del que escribe y de quienes lean. (Dalmaroni, 2000, p. 14)

24O tema da escrita aparece no título do livro – como podemos ver na definição de Saer – e pode ser estendido ao significado do próprio vocábulo “imborrable” : aquilo que não pode ser apagado. O registro escrito apresenta, então, esse sentido de resistência, de gesto ativo do corpo, um registro da própria experiência. É, então, promissor atestar como Saer projeta a escrita como esse movimento do corpo em direção ao mundo, como um desdobramento da própria percepção. O ato de escrever à mão promove envolvimento mais enfático, segundo o escritor, entre o corpo do artista e aquilo que é dito e experienciado. É a possibilidade de tocar e expandir a própria relação do artista com as coisas : uma projeção da experiência no mundo. Saer afirma, ao final, que há uma comunhão maior entre a experiência do escritor e a do leitor, pelo ato de escrever à mão. É como se criasse, por meio desse gesto, uma extensão mais física entre os sentidos do corpo do artista em direção aos dos leitores. A escrita deixa de ser vista como um produto para se tornar uma via para acesso aos corpos, como gesto de expressão do mundo, como abertura ao visitado e tocado pelos corpos.

25A contraposição entre o livro de Walter Bueno e a crítica de Tomatis – publicada contra esse livro – protagoniza o dilema da escrita em Lo imborrable. La brisa en el trigo representa o poder da ditadura em financiar e legitimar seu próprio discurso, enquanto que o texto de Tomatis se centra em desestruturar esses mecanismos. A questão da ditadura é, então, desvelada pelos discursos e deve ser desconstruída nesse mesmo âmbito. A discussão poética sobre La brisa en el trigo, posteriormente, se centraliza em Lo imborrable : é como se a questão da ditadura fosse deixada de lado. É uma falsa impressão, já que toda a discussão do livro se processa no afã de mostrar como os discursos são construídos. A ditadura é denunciada no desaparecimento da jovem Tacuara e na depressão que acometeu a Tomatis, no início da trama. Quando Alonso anuncia seu projeto de reorganização das forças intelectuais, percebe-se a busca por superação dessa nódoa. Tomatis – que denuncia em todo o romance a estagnação do pensamento daqueles que se deixaram metamorfosear em “répteis” – representa a resistência a esse poder constituído. É por meio dessa personagem que Saer defende os discursos como o espaço de embate e reordenação de ideologias.

26A fala de Saer – na citação anterior – articula uma filosofia do corpo, da carne. Esse pensamento elucida a relação da personagem com o mundo por meio da experiência. É o que Saer afirma : a escrita como esse braço estendido, tocando o leitor, como a propagação desses caminhos do sentir, de ação do vidente-visível, nos âmbitos ficcional e humano. A discussão sobre o estatuto dos textos em Lo imborrable é uma maneira de retomar o problema dos discursos instituídos pelo poder, aclarando a relação das palavras com as coisas. É como se Saer estivesse desvelando os estratagemas dos textos e mostrando como a literatura participa desse jogo dos discursos. Defendendo uma literatura que problematiza o mundo, Saer também se posiciona contrário ao simplório ou a um texto não radicalizado na discussão de seu próprio estatuto. A escrita, então, se mostra como uma arma “imborrable” de resistência. Lo imborrable é a defesa de como a literatura pode ser emancipadora do conhecimento do mundo e de si mesma, por meio de uma criticidade permanente.

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Bibliographie

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Dalmaroni, Miguel, El grafismo visible de la voz de lo real : la lección del poema en Juan José Saer , Rosario : 2000, Issn 2313-9269, http://www.lectorcomun.com/miguel-dalmaroni/revistas/78/el-grafismo-visible-de-la-voz-de-lo-real-la-leccion-del-poema-en-juan-jose-saer/ [acceso en : 08 dez. 2014]

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Saer, Juan José, Glosa, Buenos Aires : Compañía Editora Espasa / Seix Barral, 1995

Saer, Juan José, Lo imborrable, Buenos Aires : Alianza Editorial, 1993

Saer, Juan José, El concepto de ficción, Buenos Aires : Espasa Calpe, 1997

Saer, Juan José, La grande, Buenos Aires : Seix Barral, 2005

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Pour citer cet article

Référence électronique

Raquel Alves Mota, « O jogo da escrita em Lo imborrable de Juan José Saer : da ditadura à poética »Amerika [En ligne], 15 | 2016, mis en ligne le 15 décembre 2016, consulté le 05 novembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/amerika/7689 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/amerika.7689

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Auteur

Raquel Alves Mota

UFMG – Brasil
raquelfale2003@yahoo.com.br

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