« La materia de la violencia es el cuerpo »
(ORTEGA, 2008, p. 9)
- 1 Por exemplo, as festas populares no Peru, existentes desde antes da Conquista, e que continuam exis (...)
1Essa constatação de Ortega pode soar óbvia, mas nos parece um interessante ponto de partida para pensarmos o lugar da morte e de sua representação na cultura peruana, desde a época da Conquista até as últimas décadas do século XX, marcadas por inúmeras formas de violência e aniquilamento dos corpos. O reconhecimento do corpo como objeto da violência nos permite pensar a valorização de práticas corporais como forma de transmissão de conhecimento e de memória1, e em como a Conquista visou esses corpos para o seu consequente apagamento. Permite-nos refletir, ainda, sobre como Adiós Ayacucho – novela de Julio Ortega e peça teatral de Yuyachkani (com dramaturgia de Miguel Rúbio Zapata e atuação de Augusto Casafranca) – busca recuperar essa memória da Conquista para abordar a questão da morte e da violência no contexto de guerra civil no Peru do século XX.
2Como nos lembra Gabriela Ramos (2010), a violência não é uma novidade trazida pelos espanhóis no século XVI. O cenário andino antes da chegada dos europeus também é marcado pela violência – por conflito, conquista e subjugação de um povo sobre outros. No entanto, o que é novidade no projeto espanhol da Conquista é « el afán por normar y uniformar las creencias sobre el más allá y las costumbres funerarias » (Ramos, 2010, p. 60). Se, anteriormente, cada povo, mesmo que subjugado pelo império Inca, podia manter sua língua, suas crenças religiosas (mesmo que suas huacas – suas divindades – fossem confiscadas) e seus rituais fúnebres, com a chegada dos espanhóis há um intento de catequização, que é levado a cabo pela via da violência e do extermínio. Isso fica evidente quando pensamos na aplicação corrente da pena de morte na fogueira à população andina, costume da Igreja Católica para os infiéis, que se aplicava tanto nos casos de crimes contra a Igreja quanto naqueles contra o Estado : « puesto que el Estado protegía la fe cristiana, la frontera entre el delito y el pecado era ténue » (Ramos, 2010, p. 75). Nesse sentido, a morte de Atahualpa, no que ficou conhecido como « o acontecimento de Cajamarca », aparece como emblemática da mistura entre o poder político e o sagrado.
3Inúmeras são as versões e contradições a respeito da morte do último imperador Inca. Gabriela Ramos (2010) recupera alguns desses relatos, de fontes dos conquistadores, de mestiços e de incas. A maioria dessas versões afirma que o conquistador Pizarro condenou Atahualpa como traidor, porque ficou sabendo que este tramava um ataque contra os espanhóis. O inca morreria na fogueira, mas teve a chance de se arrepender e de se converter ao catolicismo, tendo assim sua pena transformada para a forca. Raras são as versões que dizem que ele teria morrido decapitado, embora seja essa a imagem que prevaleça para o mito posterior. As versões também não são unânimes quanto ao que teria sido feito depois da execução da sentença. Algumas afirmam que ele teria sido – mesmo que parcialmente – queimado, outros que apenas seus pertences teriam ido ao fogo. Quanto ao corpo, teria sido enterrado na Igreja, conforme os rituais católicos, dado que ele havia se convertido à religião dos espanhóis nos últimos momentos (Atahualpa seria, assim, ainda que apenas na morte, o primeiro inca a se tornar pertencente à cultura dos conquistadores). Porém, na cultura incaica, permanecia em aberto a sucessão de Atahualpa, que estava diretamente ligada aos rituais dedicados ao cadáver e ao lugar para onde este seria levado. Nesse sentido, os relatos se contradizem sobre se o cadáver teria sido transportado, pelo povo andino, de Cajamarca (onde estava enterrado na igreja) a Cuzco ou a Quito.
4Todas essas incertezas acerca da morte do último governante do império incaico contribuem para a propagação do que ficou conhecido como « o mito de Inkarrí ». De fato, esse mito não tem uma referência direta a Atahualpa, mas possui semelhanças tanto com este quanto com Tupac Amaru II, imperador Inca que encabeçou uma grande rebelião contra os espanhóis no século XVIII. Após a sua captura, Tupac Amaru II foi morto e esquartejado, e as partes de seu corpo espalhadas por várias regiões do Peru.
5Segundo o mito de Inkarrí (Inka Rey), cujas versões foram compiladas por Arguedas (1964), o imperador Inca teve seu corpo despedaçado e suas partes espalhadas pelos quatro cantos do Tawantinsuyo (império Inca). Sua cabeça teria sido levada para Cusco ou para Lima, variando de acordo com a versão. O mito sustenta ainda a ideia de que este corpo estaria se reconstituindo debaixo da terra e, quando encontrasse com a cabeça, o Inca voltaria para refazer o Império.
- 2 Acerca dessa visão mítico-religiosa, Burga (1988, p. 78) afirma : « Casi todos coinciden en afirma (...)
6Manuel Burga (1988) aborda, nesse sentido, a constituição disto que ele denomina, na esteira de Flores Galindo, a « utopia andina », ou seja, a construção de toda uma forma de pensamento baseada nas tradições das sociedades autóctones, capaz de sustentar a ideia de uma identidade da população peruana, principalmente no período pós-colonial no século XVII. Segundo o autor, no período imediatamente posterior à Conquista (século XVI), boa parte da população indígena se identificou e colaborou com os espanhóis, por eles trazerem a ruptura com o império Inca, também este baseado na dominação de povos (guardadas as devidas especificidades, como já dissemos), e também por uma visão mítico-religiosa propagada acerca dessa vinda dos espanhóis2. Porém, o século XVII apresenta um contexto de crise para os indígenas : « crisis demográfica, incremento de las obligaciones fiscales, de la explotación económica y finalmente ataque a las conciencias a través de las extirpaciones de las idolatrias » (Burga, 1988, p. 77). A partir de então, a visão sobre os espanhóis é desmistificada, e começa a se difundir uma imagem idealizada do período incaico :
Este es un cambio fundamental. Se construye una imagen histórica que lentamente invadirá las conciencias colectivas de los diferentes sectores indígenas. La trasmisión oral tendrá un rol fundamental en la generalización de la nueva imagen de los incas. El tiempo pasado como una edad dorada. (Burga, 1988, p. 80)
- 3 Sabemos que o termo « performatividade » não é uma escolha satisfatória para tratar, por exemplo, a (...)
7Ainda que seja uma idealização, a própria construção desse mito e sua transmissão por meio da oralidade e da performatividade3, reitera a importância e as marcas deixadas por esse acontecimento fundacional no povo peruano. Todos os anos, o acontecimento de Cajamarca e a morte do inca Atahualpa são reapresentados no âmbito das festas patronais católicas (que têm um forte caráter sincrético), espalhadas por vários povoados do território peruano. A performatização de um conflito dessa ordem traz para o campo de discussão a própria função da performance para essas sociedades enquanto prática de incorporação e de transmissão do conhecimento. Esse tipo de memória, que não é aquela escrita na história oficial dos vencedores, só pode ser transmitida por meio do corpo e da voz dos vencidos, com todos os percalços que essa transmissão sofre (de ter que, por exemplo, encontrar meios de sobreviver de forma camuflada dentro dos próprios rituais dos conquistadores). Essas práticas reverberam também no âmbito da escrita, seja por meio de estudos posteriores sobre as performances, seja pelo registro de suas « dramaturgias » (o repertório influencia, assim, o arquivo, para usar os termos de Diana Taylor), seja pela criação de novas obras baseadas nessas práticas.
- 4 O Partido Comunista do Peru - Sendero Luminoso – PCP-SL foi fundado na década de 1960, sob a lidera (...)
8O que nos propomos a analisar aqui, portanto, são duas versões de uma mesma obra – Adíos Ayacucho – que não estão inscritas no âmbito das festividades populares, mas pertencem a uma cultura muito mais contaminada pela cultura europeia : uma novela e uma peça teatral de um grupo de Lima. Não são obras que pretendem representar exatamente o acontecimento de Cajamarca e a violência inicial da Conquista, mas sim uma violência mais recente no contexto peruano, aquela que assolou o país durante a guerra civil entre as décadas de 1980 e 2000, quando a população via-se ameaçada tanto pelas forças do Estado quanto pela resistência armada (especialmente o Partido Comunista Sendero Luminoso4). O que nos propomos aqui é a apontar relações entre essas obras e o contexto da Conquista, mais especificamente no que diz respeito à representação da morte e da violência.
9Nesse sentido, podemos nos perguntar : como representar esse tipo de violência, que toma corpo pelas vias institucionais e aparece de forma escancarada para uma sociedade ? Ou ainda, pode a arte representar a violência, sem que a representação pareça muito aquém da violência real, ou sem que seja ela mesma uma violência ? Como fazer isso ? É nesse sentido que o filósofo Jaques Rancière fala de uma « imagem intolerável ». Segundo o filósofo:
- 5 “Esta não é uma simples questão de respeito pela dignidade das pessoas. A imagem é declarada impróp (...)
Ce n’est pas une simple affaire de respect pour la dignité des personnes. L’image est déclarée inapte à critiquer la réalité parce qu’elle relève du même régime de visibilité que cette réalité, laquelle exhibe tour à tour sa face d’apparence brillante et son revers de vérité sordide qui composent un seul et même spectacle. Ce déplacement de l’intolerable dans l’image à l’intolerable de l’image s’est trouvé au cœur des tensions affectant l’art politique.5 (Rancière, 2008, p. 93-94)
10Na fala do filósofo, temos uma dupla questão : em relação à ética de se exibir uma imagem da ordem do intolerável (para o espectador ou mesmo para as pessoas em situação semelhante àquela retratada), e à validade crítica da imagem que está no mesmo « regime de visibilidade » do real. Além disso, Rancière pontua que o simples fato de uma imagem ser intolerável não implica necessariamente numa tomada de consciência e numa crítica daquela realidade. Assim, continuamos nos perguntando : como, em um contexto de extrema violência, a arte pode abordar tal tema ?
11Essa parece ser a questão que norteia a produção de Adiós Ayacucho, tanto da novela de Julio Ortega, quanto da adaptação feita pelo grupo teatral Yuyachkani. Como afirma Ortega (2008, p. 10), « construir una mirada sobre la violencia es el dilema ético actual ». Qualquer artista comprometido com seu lugar de enunciação, que desejasse assumir uma posição em relação àquela violência, deveria se defrontar com este problema ético. Afinal, a violência estava espalhada pelas ruas, pelos povoados, e a morte marcava sua presença em inúmeras famílias. Como falar de uma violência tão escancarada ? Se a tarefa parece difícil, ela é igualmente necessária. Mauro Mamani Macedo destaca a importância dessa enunciação que assume o seu próprio contexto :
Hablar desde la tierra de origen no solamente involucra informar sobre el espacio geográfico donde uno vive sin tensión, sino una instancia geocultural que atraviesa múltiples tensiones, que cruza y entrecruza valores abstractos y concretos en forma de estructuras. Es ubicarse y tomar posición. Elegir un espacio desde el cual uno decide hablar no es una elección sencilla, sino es asumir el espacio que ocupa e involucrarse en una tradición. (Mamani Macedo, 2009, p. 13)
12Ambos, Julio Ortega e Yuyachkani, desejaram tomar essa posição por meio da escrita (textual/cênica) de Adiós Ayacucho. Eles optaram por deixar que o texto fosse perpassado pelas inúmeras tensões presentes no espaço geográfico andino (questões que começamos a apontar quando tratamos da fundação disso que se constituiu como o Peru atual).
13Nesse sentido, gostaríamos de voltar ao ponto de partida deste texto para lembrar, com Ortega (2008), que a violência se dá no corpo. Mais do que isso, podemos afirmar que as marcas da violência de um povo se transmitem muito mais pelo repertório do que pelo arquivo (Taylor, 2013), ou para dizer de outra forma, estão inscritas muito mais no corpo das pessoas do que nos informes oficiais.
14A representação da violência, nesse sentido, necessita tomar corpo. E isso é significativo em um contexto em que grande parte da violência está materializada justamente no desaparecimento dos corpos, na anulação de suas identidades e na impossibilidade dos devidos sepultamentos (inúmeros mortos nesse período de guerra civil no Peru eram enterrados em valas comuns, sem identificação). Trata-se, portanto, de dar corpo a uma falta de corpo, de dar presença a uma ausência. É justamente esse o mote de Adiós Ayacucho. Alfonso Cánepa, dirigente campesino, morto pelas forças do Estado, empreende uma viagem até a capital Lima a fim de recobrar o resto de seus ossos, que ele acredita terem sido levados para lá, e entregar uma carta ao presidente Belaúnde, denunciando a sua própria situação e a situação de violência do país.
15Assim começa a novela de Ortega (2008, p. 17) : « Vine a Lima a recobrar mi cadáver. Así comenzaría mi discurso cuando llegase a Lima, pero ahora sólo empezaba a salir de la fosa donde me habían arrojado, luego de quemarme y mutilarme, dejándome sin la mitad de mis huesos que se llevaron a Lima ». Vemos, já logo no início, e veremos depois no desenvolvimento de todo o enredo, uma clara referência ao mito de Inkarrí, ao esquartejamento e ao corpo queimado do Inca. Tal referência é reiterada pela última frase, tanto da novela quanto da peça : « Ya me levantaría en esta tierra, como una columna de piedra y de fuego ». Não se trata de um reestabelecimento do império Inca, como veremos mais adiante, mas de uma valorização daquela cultura – das formas de pensamento, de sensibilidade, sua cosmovisão – para que as tensões provocadas pela heterogeneidade presente no país possam conviver de forma produtiva, e não violenta.
- 6 Não nos aprofundaremos na questão do antropólogo neste artigo, mas entendemos, com Vich e Hibbett ((...)
16No texto de Ortega, Cánepa, durante uma conversa com o personagem antropólogo6, retoma o mito de Inkarrí, questionando se Vicente de Valverde teria sido também um antropólogo. O outro, durante a discussão, zomba de Cánepa : « ¿ Quién te crees que eres ? – volvió furioso – ¿ Um Tupac Amaru en bluyines ? ¿ Te crees el mismísimo Inkarrí, que espera que sus miembros renazcan para despertar ? ¡ Descansa en paz ! » (Ortega, 2008, p. 30).
17É justamente um « Tupac Amaru en bluyines » que Ortega parece materializar em seu texto, ao atualizar este mito. Inkarrí é contextualizado para o Peru da década de 1980, quando inúmeros campesinos eram mortos, esquartejados, “desaparecidos”. Segundo o informe final da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru (CVR – Peru), é em Ayacucho que se dá o maior número de mortes e desaparecimentos do período, representando mais de 40 % dos casos. É nas zonas mais pobres, principalmente onde a população fala quéchua como língua materna, que a violência aparece de forma mais brutal. Ao fazer referência a essa violência, Adiós Ayacucho também relembra a violência da época da Conquista, aproximando a imagem de Cánepa, esse campesino que sofre a violência do Estado, à imagem do Inca, subjugado e morto, mas cuja promessa, viva pela utopia andina, é de se reerguer.
18Assim, Alfonso Cánepa também estabelece uma trajetória de reintegração de seu corpo, trajetória essa que depende de um percurso que se desenvolve no espaço geográfico : a migração de Ayacucho até Lima. Devemos lembrar que, desde a colonização espanhola no Peru, e com o estabelecimento das sedes administrativas da coroa na cidade de Lima (inicialmente chamada de Ciudad de los Reyes), vigorou uma forte separação entre um Peru urbano e dominado pela cultura espanhola, e um Peru rural, mantenedor das crenças e práticas indígenas e das línguas nativas. A partir da segunda metade do século XX, porém, tornou-se intenso o processo migratório das regiões rurais para a capital Lima, em busca de melhores condições de vida, de forma que « em apenas meio século, [Lima] passou a concentrar um terço de toda a população nacional » (Dameane, 2013, p. 110).
19Para pensar esse novo quadro que se estabelece no país, e suas implicações nas formas de representação, Cornejo Polar propõe a categoria do sujeito migrante :
Tengo para mí que a partir de tal sujeto, y de sus discursos y modos de representación, se podría producir una categoría que permita leer amplios e importantes segmentos de la literatura Latinoamericana – entendida en el más amplio de sus sentidos – especialmente los que están definidos por su radical heterogeneidad. (Cornejo Polar, 1996, p. 838)
20Alfonso Cánepa representa, de certa forma, essa categoria do sujeito migrante, que vai da zona rural à sede administrativa do país. Ao chegar à cidade de Lima, ele se depara com multidões de pessoas de todo tipo : despachantes, usureiros, fotógrafos, policiais, familiares de desaparecidos, mendigos, crianças, loucos, vendedores. Dessa forma, com a diversidade de pessoas que se encontra no espaço público da cidade, Cánepa – um cadáver, vale lembrar – pode passar despercebido, ou melhor, pode se misturar àquela diversidade de sofrimentos. O que ele deseja, porém, não é se misturar completamente àquelas figuras, tornando-se um mendigo, por exemplo ; Cánepa tem dois objetivos claros : entregar a carta ao presidente Belaúnde e recuperar o resto de sua ossada. Quanto ao primeiro objetivo, sua jornada termina falha : após ter conseguido entregar a carta ao presidente, ele a vê no chão, amassada e sem abrir. Quanto ao segundo objetivo, Cánepa tem um pouco mais de êxito : embora não consiga recuperar seus ossos originais, recompõe, de outra maneira, aquilo que lhe faltava.
21Após tentar entregar a carta ao presidente, Cánepa e o garoto que o ajuda entram na catedral na Praça de Armas, e param diante do sarcófago do que seria o cadáver de Francisco Pizarro, o que retoma mais uma vez o episódio da Conquista. Com a ajuda do garoto, Cánepa pega aquela que seria a caveira do conquistador, separa os ossos que lhe faltam para completar sua própria ossada e entrega o resto para que o garoto venda. Podemos entender esse gesto de Cánepa como a representação de uma heterogeneidade presente no sujeito migrante, naquele que vai do povoado à capital, como postula Cornejo Polar (1996, p. 841) :
Mi hipótesis primaria tiene que ver con el supuesto que el discurso migrante es radicalmente descentrado, en cuanto se construye alrededor de ejes varios y asimétricos, de alguna manera incompatibles y contradictorios de un modo no dialéctico. […] imagino – al contrario – que el allí y el aquí, que son también el ayer y el hoy, refuerzan su aptitud enunciativa y pueden tramar narrativas bifrontes y – hasta si se quiere, exagerando las cosas – esquizofrénicas. […] considero que el desplazamiento migratorio duplica (o más) el territorio del sujeto y le ofrece o lo condena a hablar desde más de un Lugar. Es un discurso doble o múltiplemente situado.
22A partir desse percurso migratório, é possível que o corpo de Cánepa seja reconfigurado, como ocorre no mito de Inkarrí. Porém, neste « novo corpo » estão presentes tanto as culturas indígenas, quéchua e aymara, quanto aquilo que veio com a invasão espanhola. No trecho final de Adiós Ayacucho, como mencionamos anteriormente, há uma clara referência ao mito de Inkarrí, quando Cánepa diz « Ya me levantaria en esta tierra, como una coluna de piedra y de fuego ». Porém esse levantar-se não pode mais ser apenas do Inca, pois já há uma heterogeneidade presente na própria reconstituição da ossada. A partir daí, e apenas a partir dessa compreensão, Cánepa e as outras vítimas da violência podem conceber formas de « descansar em paz ». No entanto, compreender que é apenas a partir da heterogeneidade que a sociedade pode se reerguer não significa, como a crítica festiva do hibridismo costuma fazer, apagar as marcas da violência e do massacre presentes nesse confronto, mas sim perceber como tais marcas inscritas no corpo e nas corporeidades podem dar lugar a formas alternativas de resistência. Alfonso Cánepa não consegue entregar sua carta aos meios oficiais, nem recobrar sua verdadeira ossada, mas se reconstrói transgredindo aquilo que há de mais oficial na história do Peru : o corpo do conquistador enterrado numa Igreja.
23Tal ideia de heterogeneidade está presente tanto na novela quanto na peça teatral. No entanto, acreditamos que Yuyachkani dá um passo além ao colocar essa narrativa de Ortega em performance, levando-a como presença viva, inclusive, para as comunidades andinas, onde se instituíam, já nos anos 2000, as audiências públicas da CVR – Peru.
24Esse passo dado pelo Yuyachkani nos parece importante justamente pela questão que postulamos, logo no início, a respeito do corpo e da corporificação da violência. Por meio da performance, aquilo que pertencia ao âmbito da escrita ganha corpo e voz e pode tanto se inserir na cultura oral das populações campesinas (por meio, inclusive, das representações feitas pelo grupo em língua quéchua), quanto materializar de diferentes formas a violência sofrida pelo personagem Cánepa (que ecoa inúmeras outras violências reais sofridas no país).
25Porém, logo no início do processo de montagem da peça, o grupo se deparou com uma questão fundamental : como dar corpo e voz a um sujeito morto e « sem corpo » ? Ora, na novela de Ortega, por meio da linguagem escrita, é possível que um personagem já morto narre a sua história e crie sua própria imagem – de um sujeito queimado, esquartejado. Mas como transferir essa imagem para o teatro ? Por um hiper-realismo, a cena poderia ficar ou chocante (a ideia de Rancière de « imagem intolerável »), ou – mais provavelmente, no caso do teatro – risível e não crível. Miguel Rubio Zapata, diretor do grupo, conta a solução que o ator Augusto Casafranca encontrou para essa representação :
Augusto me invitó a la sala y un « q’olla » de Paucartambo, Cusco, me contó la historia. Así comenzó la propuesta que luego se transformaría en la relación Q’olla-Cánepa, en el pacto que hace el Q’olla con el espíritu de Alfonso Cánepa, el muerto que se vela ritualmente, para que a través suyo se supiera lo que le sucedió a Cánepa. (Rubio Zapata, 2008, p. 92)
- 7 Na novela de Ortega, os restos de Cánepa que teriam sido levados a Lima foram reunidos pelos milita (...)
26Assim, a saída encontrada pelo ator Casafranca e pelo diretor Rubio Zapata foi trazer para a cena uma figura tradicional da cultura popular andina : o Q’olla. Trata-se de um dançante da Qapac Qolla, que representa os ganaderos do altiplano, de Titicaca, que traziam seus produtos (principalmente lãs) para comercializar em Paucartambo, e vinham homenagear a Virgen del Carmen. Na peça de Yuyachkani, o Q’olla assume também a função de Alma Qateq (« guia de almas »), que « auxilia diretamente nesse processo de reconstrução da identidade física e civil de Cánepa e inicia o ritual funerário », como observa Carla Dameane (2013, p. 83). É ele quem vai dar corpo e voz para Alfonso Cánepa, em seu processo migratório rumo a Lima e rumo à reconstituição de sua ossada. Assim, na peça teatral, a presença do morto será materializada na alternância da presença de Cánepa com a presença do Q’olla no corpo do ator Casafranca. Na cena inicial da peça Adiós Ayacucho, instaura-se uma espécie de ritual funerário, em que as roupas de Cánepa estão sendo veladas (o que reforça a ideia da ausência do corpo morto) e o Q’olla está dentro de um saco plástico preto7, de onde vai saindo. Ao ver as roupas de Cánepa, ele diz : « Eso (mirando los sapatos) a ti ya no te sirve, y a mí me hace falta. » (Rubio Zapata, 2008, p. 97). Neste momento, ele sobe sobre os sapatos do morto, que passa a falar através dele, alternando a voz com a do Q’olla.
27É interessante observar que já nessa primeira fala é possível perceber o tom cômico da figura do Q’olla, que traz um contraponto à tragicidade da história narrada. Em diversos outros momentos, ele trará esse tom cômico, como quando Cánepa conta sobre sua morte, sobre sua « condição de peruano crédulo », por ter se apresentado à Comissária de Polícia. A isso, o Q’olla lhe responde : « claro, sólo un tonto iría hasta la comisaría sabiendo que lo perseguían » (Rubio Zapata, 2008, p. 101). O caráter cômico aqui é intensificado pela alternância de vozes num mesmo ator, pois o ator Casafranca materializa tanto a voz do peruano crédulo que é o defunto Cánepa, quanto a voz crítica e irônica do Q’olla. Sobre ese trecho, Vich e Hibbett (in Ortega, 2008, p. 115) fazem uma interessante leitura : « El lector debe caer en cuenta de la dinámica según la cual todo peruano acriollado – es decir, quien ya ocupa una posición de poder – debe saber cuándo no creer en la ley o cuándo tomar distancia de ella a fin de evitar se ‘cojudeado’. » Para Vich e Hibbett, o humor presente em Adiós Ayacucho tem a função de uma « consciência negativa », a fim de possibilitar um posicionamento crítico frente à sociedade peruana (como nessa ideia de uma identidade peruana, do « peruano crédulo », ou daquele que é demasiadamente peruano).
- 8 O texto de Yuyachkani é bem mais dinâmico que a narração de Ortega, tem menos detalhes do caminho m (...)
28Essa comicidade está presente já no texto de Ortega, por meio da figura grotesca de um cadáver disforme que vai buscar o resto de sua ossada em Lima. Para a montagem de Yuyachkani, Miguel Rubio conta que a comicidade não estava evidente desde o início. Quando escolheram o texto de Ortega e selecionaram o que iria para a montagem8, lhes interessava a princípio apenas a tragicidade da situação, que eles acreditavam condizer melhor com a tragicidade da própria realidade do país. Porém, o dramaturgo Osvaldo Dragún lhes deu a chave para esse entendimento :
Que cosa más terrible, no puede haber nada peor, supongo que lo harás con mucho humor, sino qué va a ser eso, ¿ nó ? », dijo Osvaldo luego de escuchar nuestras intenciones. Ese comentario fue clave para que Augusto y yo nos lanzáramos a trabajar sobre el cómico andino presente en muchas danzas tradicionales. (Rubio Zapata, 2008, p. 91).
29Acreditamos que essa comicidade foi a chave encontrada por Ortega e por Yuyachkani para responder ao « dilema ético » da representação da violência concreta do país. Esse « escândalo do pensamento » (Ortega, 2008, p. 10), que é a violência efetiva, pode ser mais bem assimilado por recursos que o atinjam por outros vieses – talvez não o humor escancarado, mas o humor grotesco ou irônico. Assim, « el lector, al reírse de las bromas y los dobles sentidos, se vuelve cómplice de Cánepa y es ahí donde la novela realiza su apuesta política (y estética, sin duda) » (Vich ; Hibbett, In Ortega, 2008, p. 114). Dessa forma, Yuyachkani pôde seguir representando a peça por diversas comunidades onde aconteciam as audiências da CVR, estabelecendo um diálogo entre a história de Cánepa e a violência sofrida por muitos peruanos.