« Milagre é isso, amor, as avós dançando,
duas avós tortas e o neto doutor, dançando cada uma sua dança. »
Jorge Amado, Tenda dos milagres
« Me perguntam : ‘O que é que eu faço ?’
E eu respondo : ‘Milagres, milagres !'«
Cazuza, Denise Barroso e Frejat, « Milagres »
- 1 Amado, Jorge, Tenda dos milagres, Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2008 (1ª ed.: 1969).
Amado, Jorge (...)
- 2 Martins, José de Barros, et al., Jorge Amado – 30 anos de Literatura, São Paulo: Martins, 1961.
O vo (...)
- 3 “Vargas Llosa diz que 3 brasileiros deveriam ter levado o Nobel” in A Tarde, 14 out 2010, www.atard (...)
1Tenda dos milagres é um romance que Jorge Amado lançou em 1969, quando já era autor consagrado inclusive internacionalmente, traduzido para dezenas de línguas e, no Brasil, grande sucesso de público há décadas1. Além disso, também já integrava a Academia Brasileira de Letras desde 1961 e era escritor respeitado por pares brasileiros muito importantes : Graciliano Ramos, Jorge de Lima e José Lins do Rego2, dentre outros. Mais recentemente, Mário Vargas Llosa, escritor peruano e Prêmio Nobel de Literatura, o considerou digno de receber aquele prêmio, junto com apenas dois outros escritores brasileiros – Euclides da Cunha e Guimarães Rosa3.
- 4 Bosi, Alfredo, “Jorge Amado”, in História concisa da Literatura brasileira, 3ª ed., São Paulo: Cult (...)
2Reservas críticas a sua produção cresceram especialmente a partir da década de 70, quando debates culturais de esquerda sofriam diversas mudanças ao menos desde o início da ditadura brasileira de 1964/1985 e, no plano internacional, a Primavera de Praga e o Maio de 1968 na França, movimentos estudantis de protesto em diferentes países e a pauta de discussões sobre sexualidade e meio ambiente desenvolvida pela chamada Contracultura, retomando e redirecionando temas que faziam parte de debates anarquistas, soviéticos (início da Revolução Russa) e das vanguardas artísticas desde meados do século XIX até os anos 30 do século XX4. O relançamento mais recente dessa vasta obra no Brasil por uma editora de prestígio – a Companhia das Letras –, que publica igualmente alguns daqueles críticos mais severos (Bosi, Galvão), sugere nova revalorização do romancista no mercado e ainda noutras instâncias de consagração, como Imprensa e festivais literários.
3A publicação de Tenda dos milagres em 1969 também significou interferência crítica num cenário político brasileiro marcado por uma ditadura em ascensão. Reafirmar poderes populares naquele contexto, como Jorge Amado o fez, era enfrentar um regime que se estruturava sobre argumentos de competência técnica autoritária e antipopular.
4Seu personagem principal, Pedro Archanjo, é um pobre bedel mulato na Faculdade de Medicina de Salvador, Bahia, desde o começo do século XX até à década de 40. Nascido em 1868, Archanjo conquistou esse emprego em 1900, a partir do apoio de Majé Bassã, Mãe de Santo que o considerava um corifeu em seu terreiro (TM, pp 90/91). Pedro Archanjo era solícito e gentil sem se tornar reverente nem adulador. Ele expressava igualdade e civilidade, num contexto afirmativo da cidadania republicana.
5Archanjo recebeu como missão de Xangô (divindade do Candomblé, caracterizada por virilidade e senso de Justiça, que porta uma arma, o Oxê, machado de dois gumes e que tem ao menos três mulheres – Oyá, Oxum e Obá) estudar dimensões da cultura afro-brasileira e, indiretamente, confrontar teorias racistas predominantes no meio universitário e na elite branca baiana e brasileira da época, que falava em hierarquia entre as raças humanas, sendo a branca considerada superior. O Professor Nilo Argolo, da Faculdade de Medicina de Salvador, era o principal representante dessa postura. Pedro começou a fazer anotações sistemáticas sobre cultura popular baiana e se transformou numa espécie de etnógrafo, de notável erudição e defensor dos direitos de negros e mulatos, homens e mulheres portadores de Cultura e dignidade.
6O personagem era também conhecido como Ojuobá, Olhos de Xangô. Seu outro nome evoca referências cristãs : Pedro, apóstolo e fundador da Igreja Católica ; e Archanjo, líder entre anjos, mensageiro (o que remete indiretamente para o orixá Exu). Trata-se de situação muito frequente no romance, que defende os mestiços ao mesmo tempo em que espalha articulações anti-excludentes (erudito/popular, povo/elite, prazer/luta, Candomblé/Cristianismo).
7A filiação de Pedro Archanjo no Candomblé foi remetida a Exu, Xangô, Ogum e Iemanjá, com o acréscimo : « Não resta dúvida. Archanjo era o Cão. » (TM, p. 74). Desde os próprios nomes, Pedro Archanjo/Ojuobá estabelecia articulações entre Anjo e Cão, Catolicismo e Candomblé.
8Sedutor e fornicador, Pedro Archanjo teve filhos com mulheres de diferentes identidades raciais. Seu fervor amoroso, desdobrado em filhos mestiços (sempre meninos), era um desmentido vivo daquelas teorias racistas. O nome do personagem sugere um anjo sexuado, lutador (o Oxê de Xangô e o falo como instrumentos de transformação do mundo). Esse caráter não diminui o poder transformador das vaginas : sem elas, os falos não têm onde fazer filhos nem também com quem compartilhar gozos. E as mulheres aparecem no romance como outras lutadoras e fruidoras de prazeres – nem só os pênis conhecem os combates e a alegria de viver.
9Exu, associado a comunicação, transformação, erotismo e astúcia, relacionando os mundos material e espiritual, portador de notável sabedoria, conduzindo um bastão – o Ogó - com forma fálica, figura no romance como protetor de Pedro em mais de uma ocasião. Pedro nasceu antes que a parteira chegasse para ajudar sua mãe no parto e a primeira comentou : « isto é um Exu, que Deus me livre e guarde, só mesmo gente do Cão nasce sem esperar parteira. Vai dar muito que falar e o que fazer » (TM, p. 173).
10Ogum (ferreiro que forja seus próprios instrumentos de caça, agricultura e guerra) e Iemanjá (rainha do mar, também associada a beleza e fraternidade, dotada da persistência das ondas contra pedras e outros obstáculos) são igualmente mencionados em cerimônias de Candomblé relacionando-se com Pedro Archanjo, evidenciando os vínculos do personagem com aqueles atributos de combate e vitalidade.
11Eros e lutas sociais não se opõem no romance, como se observa num pensamento de Pedro Archanjo : « A formosura das mulheres, das simples mulheres do povo, é atributo da cidade mestiça, do amor das raças, da clara manhã sem preconceito. » (TM, p. 24). A luta por direitos coletivos (o combate ao preconceito) não menospreza a beleza humana, o amor, a geração de novas vidas que ultrapassa cores de peles. A manhã sem preconceito é um mundo melhor, mais igualitário e feliz.
- 5 Amado, Jorge, Gabriela cravo e canela, São Paulo: Cia. das Letras, 2008 (1ª ed.: 1958).
12Discutirei a sacralização politizada desse falo e seus desdobramentos numa inseminação transformadora do mundo. Para tanto, é necessário tomar como pontos de referência a primeira trajetória literária de Amado (escritor de romances de esquerda), suas mudanças a partir do romance Gabriela (1958)5 e o momento em que o romance Tenda dos milagres surgiu.
- 6 Damatta, Roberto, “Do país do carnaval à carnavalização: o escritor e seus dois brasis”, in Caderno (...)
13O antropólogo Roberto DaMatta enfatiza uma ruptura na trajetória literária do escritor (os romances militantes dos anos 30/40, os romances posteriores de carnavalização plena – dois brasis na obra do ficcionista, segundo DaMatta), que o próprio Amado considera inexistente, falando, isto sim, em passagem de um momento para outro. Eduardo de Assis Duarte, no campo dos Estudos Literários, reflete sobre a posição do povo (classe, gênero e etnia) como personagem e leitor da obra amadiana, nuançando aquela imagem de ruptura. E o historiador João Carlos Reis apresenta referências de personagens das camadas populares e também das elites eruditas baianas na construção do romance Tenda dos milagres, com menor ênfase em sua tessitura literária6.
- 7 Amado, Jorge, Jubiabá, Rio de Janeiro: Record, 1983 (1ª ed.: 1935).
14Tenda dos milagres é um romance que apresenta possíveis horizontes de democracia racial (e da democracia em geral) como fruto da cultura e da luta dos grupos populares e não como generosa doação dos grupos dominantes ou do aparelho de estado. Nesse sentido, o romance realiza um balanço e uma projeção de temas e poética presentes no conjunto da obra anterior de Jorge Amado, negando ainda uma ditadura que se implantara em 1964 como doadora de democracia para a população brasileira. Embora a ênfase do romance de 1969 não seja apenas nas classes sociais, é necessário lembrar que mesmo em sua anterior obra mais explicitamente engajada, essa exclusividade nunca aconteceu – o personagem Jubiabá, pai de santo e negro, é referência permanente no livro de Jorge Amado que traz seu nome no título7. É possível pensar que, naquela « primeira fase » do escritor, a cultura popular era um ponto de partida, cuja meta desembocava na revolução : Balduíno, personagem central de Jubiabá, é protegido pelo pai de santo, quando fica órfão, torna-se adulto, passa a participar de lutas sindicais de esquerda e o romance se encerra com a morte de Jubiabá, como se uma etapa da história popular e tradicional findasse para dar lugar a outra – a revolucionária -, sem perder a memória do período anterior. Em Tenda dos milagres, a luta social de Pedro Archanjo e suas conquistas não têm esse caráter de meta maior no futuro (a revolução), elas já se fazem a partir da cultura popular existente.
15Tenda dos milagres se inicia com um prólogo que enfatiza o particularismo local e a universalidade do que ali se tratará. Por um lado, uma geografia soteropolitana, que arrola bairros, personagens e fazeres específicos. Por outro, a clara indicação do caráter mito-poético dessa Geografia. Não se trata de seguir literalmente o dizer « Nesse território popular nasceram a música e a dança » (quer dizer, a beleza e o prazer – TM, p 11), que seria empiricamente rebatido com a maior facilidade... Em termos mito-poéticos, todavia, ele nos remete para toda arte nascendo da maioria da população e para o local como universal – o aqui é qualquer lugar !
No amplo território do Pelourinho, homens e mulheres ensinam e estudam. Universidade vasta, se estende e ramifica no Tabuão, nas Portas do Carmo e em Santo Antônio Além-do-Carmo, na Baixa do Sapateiro, nos mercados, no Maciel, na Lapinha, no Largo da Sé, no Tororó, na Barroquinha, nas Sete Portas, no Rio Vermelho, em todas as partes onde homens e mulheres trabalham os metais e as madeiras, utilizam ervas e raízes, misturam ritmos, passos e sangue ; na mistura criaram uma cor e um som, imagem nova, original. (TM, p. 11)
16Tal abertura é marcada por mais de uma mão dupla de igualdade : homens e mulheres, ensinar e estudar, erudições. Essa gente e sua cidade se fazem sobre matérias (metais e madeiras, ervas e raízes) e espírito (cor, som, imagem), articulados por ritmos, passos e sangue – seres humanos, corpos que são natureza e espírito. A mestiçagem, ponto de partida corporal e cultural, integra a riqueza dos saberes.
- 8 Cf. o debate antropológico de:
Lewis, Oscar, The children of Sánchez – Autobiography of a Mexican fa (...)
17Uma característica muito destacada nesse começo de romance é a extrema riqueza da cultura popular, mesmo sendo produto e suporte de vida de pessoas muito pobres. Nesse sentido, o romance se diferencia de qualquer « cultura da pobreza » como arrolamento de estratégias na sobrevivência dos pobres8, pelo contrário, enfatiza a riqueza daquela cultura que, depois, definirá como « bem do povo » (TM, p. 247). Um item dessa cultura é a Capoeira, definida como brinquedo, ao mesmo tempo em que é multiplicidade de saberes, luta, música e dança. A Escola de Capoeira Angola, de Mestre Budião, funciona ao lado da Igreja do Rosário dos Pretos, articulações entre tradições africanas e Catolicismo) : ao invés de enfatizar polos que se negam, o romance destaca laços que associam matérias, fazeres, maneiras de ser e sentir.
18Há clivagens, todavia. Num canto de Capoeira, é lembrado :
Menino, quem foi seu mestre ?
Meu mestre foi Barroquinha
Barba ele não tinha
Metia o facão na polícia
E paisano tratava bem. (TM, p. 12)
19Existem poderes a serem enfrentados (a polícia), existem poderes a serem compartilhados (os paisanos). Aquela riqueza da cultura é também tradição de camaradagem e combate. E ela define o território popular como espaço de liberdade e arte, liberdade e saberes próprios.
20A rica cultura se expressa em diferentes linguagens – dança, música, pintura, literatura, religiosidade, cuidados com a saúde. E a Tenda dos Milagres (oficina do pintor de ex-votos Lídio Corró, fraternal amigo de Pedro), que dá nome ao romance, também é definida como um Senado que reúne os notáveis da pobreza. Trata-se mesmo de uma anunciada universidade, cujo reitor é Pedro Archanjo – personagem central do romance, citado pela primeira vez nessa condição (TM, p. 13) - e que contrasta com outro duvidoso lugar de saber, a Faculdade de Medicina : na última, « (...) igualmente se ensina a curar doenças, a cuidar de enfermos. Além de outras matérias : da retórica ao soneto e outras suspeitas teorias. » (TM, p. 14).
21A diferença entre essa seca descrição da Faculdade de Medicina e as minúcias do que foi dito antes sobre o mundo popular configura um cenário da narração, nuançado por personagens e atos de cada espaço. Ele dá início à apresentação das oposições entre uma cultura popular rica e complexa, em confronto com uma cultura de elite frequentemente superficial e preconceituosa.
22O romance mesclará sutilmente tais mundos, através de personagens que transitam por um e outro, ultrapassando seus limites, configurando uma erudição popular e uma sensibilidade compartilhada de elite. Assim agiam os Professores Virajá Silva e Fraga Neto, bem como frei Timóteo, prior dos Franciscanos, e Zabela, aristocrata já idosa, todos admiravam e apoiavam Archanjo. O trabalho de Ojuobá contra os professores racistas se aprofundou como resposta a esses homens e ele valorizou a cultura popular como « bens da cultura e da liberdade » (TM, p. 124). E a preseunção de pureza racial de Nilo Argolo e outros mereceu uma crítica do bedel e escritor : « São mestiças a nossa face e a vossa face ; é mestiça a nossa cultura mas a vossa é importada, é merda em pó » (TM, p. 125).
23O romance registra uma proeza de Pedro Archanjo aos 36 anos : liderar o desfile do Afoxé dos Filhos da Bahia no carnaval de 1904, contra a proibição desse tipo de grupo carnavalesco pela polícia. O tema do desfile era Zumbi, referência de luta, « dança dos negros fugidos dos engenhos, do relho, dos capatazes e senhores, da condição de alimária, recuperados homens e beligerantes ; nunca mais escravos » (TM, p. 67). Pedro Archanjo foi identificado pela polícia como « pardo (...) cabeça de tudo » (TM, p. 68), confirmação involuntária de sua identidade como herói cultural.
- 9 Alencastro evocou o pavor da elite branca imperial brasileira em relação à identificação do Brasil (...)
24Tenda dos milagres esclarece que « Afoxé significa encantamento » (TM, p. 69). Os orixás, por sua vez, foram antes definidos como « Encantados ». Nesse sentido, o afoxé recebeu uma função sagrada na reafirmação do poder popular negro e mestiço e esse carnaval popular baiano foi mesclado ao universo do Candomblé, com setores da Imprensa protestando contra a africanização do festejo. O afoxé chegou a ser caracterizado nos jornais como epidemia, doença, com exclamações de horror diante de uma Bahia « a par da África » (TM, pp. 70-71)9. Essa condenação do carnaval africano se desdobrou numa reafirmação do caráter latino pretendido pela elite baiana :
A continuar essa escandalosa exibição de África : as orquestras de atabaque, as alas de mestiças e de todos os graus de mestiçagem - desde as opulentas crioulas às galantes mulatas brancas -, o samba embriagador, esse encantamento, esse sortilégio, esse feitiço, então onde irá parar nossa latinidade ? Pois somos latinos, bem sabeis, se não sabeis, aprendereis à custa de relho e de porrada. (TM, p. 71)
25Ser latino (europeu) significava, portanto, dominar africanos, proibir-lhes a expressão cultural, e outro preço pago por quem não o fosse era o espancamento. A latinidade também queria dizer sentir-se superior aos demais, a partir de um lastro cultural. A inferiorização do outro passava por aquele aniquilamento de cultura, donde a afirmação social e política dos negros e mestiços exigir uma escancarada prática e exposição de maneiras de ser. No desfecho desse episódio do afoxé, os homens que escaparam da Polícia riram dos repressores, ririam depois do chefe de polícia e de seus agentes, desmoralizados pelo desfile (TM, p. 77), como ocorreria no episódio de derrota do delegado Pedro Gordilho e seus asseclas por um Ojuobá instruído por Exu. O riso, nesse e noutros momentos do romance, foi uma arma dessa gente e seu atestado de vitória sobre poderosos inimigos.
26O romance estabelece um paralelo narrativo entre o racismo com pretensões científicas, de Nilo Argolo e outros médicos, e a ação policial de violência explícita, que o delegado Pedrito Gordo praticava contra pais e filhos de santo. E registra poemas populares de louvor a Pedro Archanjo, antecipando o desfecho do conflito promovido pela polícia no Terreiro de Procópio e a derrota de Pedrito, com Archanjo designado num dos poemas como « figura do Cão » (TM, p. 127). A luta maior foi então caracterizada como oposição entre a Faculdade de Medicina e a Univrsidade popular, « universidade vital do Pelourinho » (TM, p. 129).
27Amado utiliza para caracterizar esse confronto argumentos de historiador : ausência de registros e arquivos, memória oral sobre prisão de Pedro Archanjo, referências à cultura material na destruição de instrumentos musicais e outros elementos do culto religioso africano na Bahia. O romancista não quis fazer História científica mas dialogou com esse mundo para melhor interpretar experiências humanas pela via da ficção. E definiu Argolo numa perspectiva de ausência de crítica, manifesta na atitude de não admitir a mínima dúvida sobre aquilo que dizia. A ciência crítica, verdadeira erudição, contra os preconceitos do médico, vem de um representante destacado do universo popular e mestiço – Pedro Archanjo. E deriva de fazeres religiosos, artísticos e prazerosos, incluindo de forma destacada a libido.
28Num raro diálogo entre Nilo Argolo e Pedro Archanjo, o primeiro despreza os fatos :
O que significam os fatos, de que valem se não os examinamos à luz da filosofia, à luz da ciência ? Já lhe aconteceu ler algo sobre o assunto em pauta.
– Mantinha o riso de zombaria - : Recomendo Gobineau. Um diplomata e sábio francês : viveu no Brasil e é autoridade definitiva sobre o problema das raças. Seus trabalhos estão na biblioteca da escola. (TM, p. 136)
29O argumento básico de Argolo é o da autoridade definitiva – ele mesmo, Gobineau, grandes nomes... Não há diálogo entre filosofia, ciência e fatos, os últimos apenas se submetem aos ditames daquelas. Quem se opõe a filosofia e ciência normativas só pode ser ignorante – não leu o que deveria ter lido à maneira de Nilo.
30Nessa conversa, Argolo sugeriu o emprego da violência oficial e com base supostamente científica contra negros e mulatos, numa postura protonazista (incluindo delírio sobre a maravilha de um mundo ariano, desdobrado, no romance, em elogio a Hitler), que Archanjo ironizou, aventando a eliminação de todos os que não fossem brancos. Na perspectiva do conhecimento histórico erudito clássico, esse diálogo pode parecer anacrônico ou inverossímil, sem fundamentação documental. No universo da fabulação, ele evidencia uma voz narrativa e um leitor que conhecem desdobramentos daquela argumentação racista e não escondem o lugar político e histórico de onde falam e lêem. Mas Argolo, embora arrogante, temia que Archanjo descobrisse algo sobre sua vida, não se sabia ainda o que.
31Diante de Nilo, Pedro se comportava com altiva igualdade, como cidadão republicano. Embora Ojuobá desempenhe obrigação delegada por Xangô (estudar a cultura popular afro-baiana), aos 40 anos, ele entende ter « Uma obrigação comigo mesmo » (TM, p. 139), fardo humano que se mescla com a vontade do orixá.
32O episódio da “guerra santa” movida pelo delegado Pedrito Gordo contra os candomblés reitera os poderes populares e o importante papel da religiosidade em seu eclodir. Pedrito tinha fama de corajoso (enfrentou o poderoso bicheiro Enéas Pinho) e contava com o apoio de temidos capangas. Um dos seguranças de Pedrito, desacreditado momentaneamente devido à falta de ação contra Enéas Pinho, propôs a eliminação dos candomblés, ideia que muito agradava àquele delegado, descrito como
Branco baiano, vacilando entre o loiro e o sarará, o delegado Pedrito considerava a exibição de tais costumes monstruoso acinte às famílias, achincalhe à cultura, à latinidade de que tanto se orgulhavam intelectuais, políticos, comerciantes, fazendeiros, a elite. (TM, p. 210)
33Da mesma forma que Argolo, Pedrito Gordo associava os negros à criminalidade, donde ter dado pleno endosso a uma guerra santa de extrema violência contra os costumes negros, atingindo velhos e mulheres (pessoas mais frágeis fisicamente), com destruição de instrumentos musicais, adereços sagrados e instalações dos terreiros.
34Na invasão policial em Sabagi, Manuel de Praxedes, filho de santo, negro alto e forte, enfrentou os seguranças e conseguiu escapar deles com grande salto, « prodígio de Xangô segundo o povo » (TM, p. 213). Tais capangas atearam fogo no terreiro e, posteriormente, Samuel Cobra Coral, um deles, matou Praxedes à traição e permaneceu impune.
35Procópio, diante de proibição que Pedrito Gordo tentou lhe impor em relação às cerimônias sagradas, respondeu-lhe com altivez : « Tenho que venerar meus orixás, nos dias de festa tenho de bater por eles, é minha obrigação. Mesmo que o senhor me mate. » (TM, p. 237). Há uma força do sagrado na resistência ao preconceito e à arbitrariedade, o sagrado aparece aqui como poder popular que sequer receia a morte.
36Nessa guerra, Pedrito contou com o apoio daqueles capangas extremamente violentos, destacando-se Zé Alma Grande, « cão fiel e submisso » (TM, p. 237). Tratava-se de um negro alto e forte, que estivera antes ligado ao Candomblé (quando era conhecido como Zé de Ogum) mas fora expulso do terreiro de Majé Bassã por ter matado uma iaô. Na invasão do terreiro de Procópio, Pedrito ordenou que Zé Alma Grande atacasse o Pai de Santo. Archanjo, reconhecendo Zé de Ogum, invocou Exu, Zé Alma Grande incorporou Ogum e se voltou contra os policiais, matando Samuel Cobra Coral e golpeando Zacarias da Goméia « nos quimbas » (testículos), quebrando a bengala de Pedrito - outra alusão simbólica a castração - e colocando o valente delegado para correr, apavorado :
Não coube a Pedrito Gordo outro recurso senão correr vergonhosamente, em pânico, gritando por socorro, em direção ao automóvel veloz que o levaria para longe daquele inferno de orixás desatados em milagres. (TM, p. 241)
37É muito importante realçar a palavra milagres nesse contexto : são os milagres dos Orixás, milagres do povo. Depois, Pedro Archanjo teria citado pelo Professor Fraga Neto, em concurso de Livre-Docência na Faculdade de Medicina, um fragmento de seu primeiro livro que fala em « milagres da sobrevivência ». Cabe lembrar a reiteração do título do romance – Tenda dos milagres – nessas passagens para se entender de que o romancista estava falando : dos fazeres populares em luta contra a opressão, do sagrado como importante dimensão dos poderes populares.
38O vergonhoso pavor público de Pedrito Gordo foi motivo de riso rasgado entre os setores populares, desmoralizando por completo aquele homem. E Pedro Archanjo foi entendido, na literatura de cordel, como responsável pela derrota de Pedrito. Lídio Corró relembrou, em conversa com Archanjo, como aquela briga contra a polícia e a arbitrariedade do poder de estado era duradoura, vinha ao menos desde a luta para garantir o desfile dos afoxés nos carnavais baianos. E Archanjo respondeu : « Vamos morrer brigando, jovens e afoitos » (TM, p. 243).
39Pedro Archanjo foi apresentado por Virajá a um novo professor da Faculdade de Medicina, Fraga Neto, filho de pais abastados, que estudara na Alemanha. Seu concurso foi polêmico (« parecia um diabo reinador », caracterização que aproxima o candidato de Exu – TM, p. 226), o jovem docente declarou-se materialista dialético e citou Pedro Archanjo como autoridade científica, reproduzindo passagem de um de seus livros :
São de tal maneira terríveis as condições de vida do povo baiano, tamanha é a miséria, tão absoluta a falta de assistência médica ou sanitária, do mais mínimo interesse do estado ou das autoridades, que viver em tais condições constitui por si só extraordinária demonstração de força e vitalidade. (...) verdadeiro milagre que só a mistura de raças explica e possibilita. (TM, p. 227)
40Nilo Argolo protestou contra essa fala, não foi levado a sério, Fraga Neto conseguiu aprovação e findou carregado em triunfo pelos estudantes ali presentes. O surgimento de Fraga Neto no romance representou nova tensão no universo de elite e referência explícita a argumentações de esquerda política – materialismo dialético, classes sociais. O irrestrito apoio que ele deu a Pedro Archanjo não aboliu diferenças entre ambos, que ajudariam a melhor entender o universo específico da cultura popular em relação inclusive a alguns de seus defensores nas elites.
41Depois que a guerra de Pedrito Gordo contra candomblés já fora superada, Fraga Neto, como se fosse o leitor ou o próprio escritor de Tenda dos milagres, observando a aparência de Pedro Archanjo, indagou-se sobre o que ela escondia. E perguntou a Pedro como era possível que ele, um homem de ciência, acreditasse em candomblés,
(...) tudo muito bonito, sim, senhor, o frade chega a se babar de gosto, mas, vamos convir, mestre Pedro, tudo muito primitivo, superstição, barbarismo, fetichismo, estágio primário da civilização. Como é possível ?
(...) Como lhe foi possível, mestre Pedro, conciliar tantas diferenças, ser ao mesmo tempo o não e o sim ? (TM, p. 245)
42A indagação de Fraga Neto podia ter sido feita ao próprio Jorge Amado (um comunista, ateu, que praticava o Candomblé) ou o escritor podia ter dirigido a pergunta a si mesmo. E continha impasses sobre a condição do intelectual de esquerda nos quadros de uma ditadura anti-popular, como aquela que vigorava no Brasil quando o livro foi escrito e publicado, e no universo internacional de esquerda, após a denúncia do Stalinismo (1956) e a violência soviética contra transformações políticas em países socialistas - Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968). Ser de esquerda podia continuar a ditar regras para o povo, em nome do povo, ou era extremamente urgente ouvir as nuançadas vozes populares sobre seus destinos, aprender com o povo ? As respostas de Pedro Archanjo a Fraga Neto disseram respeito a esses problemas gerais, esboçando outros projetos de esquerda e de relações entre intelectuais eruditos e saberes populares :
O meu saber não me limita.
(...) Eu penso que os orixás são um bem do povo. A luta de capoeira, o samba de roda, os afoxés, os atabaques, os berimbaus são bens do povo. Todas essas coisas que o senhor, com seu pensamento estreito, quer acabar, professor, igualzinho ao delegado Pedrito, me desculpa lhe dizer. Meu materialismo não me limita. Quanto à transformação, acredito nela, professor, e será que nada fiz para ajudá-la ? (TM, p. 247)
43Os bens do povo são suas posses e seus poderes. Destruí-los, no plano físico ou através da desqualificação intelectual, seria desapropriar o povo de valores materiais e simbólicos. O generoso Fraga Neto até foi aproximado por Pedro Archanjo do abominável Pedrito Gordo : o intelectual de esquerda que tratava o povo como inferior e atrasado se assemelhava a seus piores algozes. Ouvir Pedro Archanjo, portanto, era considerar a possibilidade de se aprender com os saberes populares. Certamente, Fraga Neto teve a grandeza necessária para se sentir perturbado pelo que Pedro lhe dizia. Resta pensar sobre outros intelectuais, que atuavam na mesma época em que Jorge Amado escrevia esse romance e até podiam lê-lo : ouviriam a voz de Archanjo ou se abrigariam numa ditadura que pretendia tutelar a vontade do povo ?
44Nilo Argolo, em frontal oposição a Fraga Neto, propôs formalmente o estabelecimento de segregação legal no Brasil através de isolamento de negros e mestiços em determinadas áreas insalubres do país – centro-oeste e norte. Enfrentando essa nova violência, Pedro Archanjo elaborou o livro Apontamentos sobre a mestiçagem nas famílias baianas, usando informações dadas por Zabela, postura de pesquisa que o aproximava da História Oral (ainda pouco praticada no Brasil de 1969), mais uma evidência das opções críticas daquela personagem de elite. No livro, Pedro salientou a mestiçagem constitutiva da sociedade baiana ao menos desde Caramuru e provocou o racista Nilo Argolo com a dedicatória :
Ao ilustríssimo senhor professor e homem de letras, dr. Nilo d’Ávila Oubitikô Argolo de Araújo,em contribuição aos seus estudos sobre o problema de raças no Brasil, ofereece as modestas páginas que se seguem seu primo Pedro Archanjo Oubitikô Ojuobá.(TM, p. 253)
45Essa dedicatória, nas páginas de Tenda dos milagres, foi sucedida pelo comentário : « Archanjo não medira nem pesara consequências » (TM, p. 227). É possível que esse dizer seja tão provocativo, para o leitor, quanto a dedicatória o foi para Nilo. Afinal, Pedro sabia onde pisava e as consequências que ele desejava eram mesmo atingir a credibilidade intelectual e a arrogância social de seu adversário, no que foi bem sucedido. Archanjo não desejava ser demitido do emprego, punição que sofreu, mas também não lamentou esse fato diante do poder que seu livro assumiu em relação àquele universo, mais o apoio de estudantes e docentes dignos como Fraga Neto, Isaías Luna e Silva Virajá, que, de São Paulo (onde estava trabalhando), escreveu :
Expulsem o bedel, se assim lhes parecer, cometam a injustiça, exerçam a violência. Jamais conseguirão, apagar dos anais da Faculdade de Medicina, o nome de quem criou, na humildade,.obra redentora do conceito de nossa escola, arrastado tão baixo pelos pregadores do ódio de raças, falsos cientistas, pequenos homens. (TM, p. 254)
46A observação sobre não medir nem pesar consequências foi respondida na mensagem de Silva Virajá : Pedro Archanjo era autor de uma obra, redimiu o conceito da Faculdade de Medicina, libertou-a de segregadores, falsos cientistas, « pequenos homens » (TM, 254). A partir de sua própria grandeza como cientista, Silva Virajá mostrava a grandeza intelectual e humana de Pedro. E sua fala indicava onde era mesmo que estava o saber. Isso também era consequência do percurso de Ojuobá, inclusive de seu último livro. Com a ressalva de que Silva Virajá e Fraga Neto representavam vozes éticas num meio social sem ética.
47Pedro Archanjo, preso, mereceu a máxima solidariedade de populares, que se aglomeravam em frente à cadeia onde ele estava. Damião de Souza discursava a favor do prisioneiro, reiterava o lema da liberdade : « liberdade para o homem bom que jamais mentiu, que jamais utilizou o saber para fazer o mal, liberdade para o homem que sabe e ensina, liberdade » (p. 256). O avesso dessas qualidades era exatamente o mundo de Nilo Argolo, Pedrito Gordo e outros defensores da violência contra os pobres. Mesmo na prisão, Pedro Archanjo continuava a ser a imagem da liberdade.
- 10 Romero, Sylvio, Contos populares do Brasil (Edição anotada por Luís da Câmara Cascudo), Rio de Jane (...)
48Em Tenda dos milagres, Jorge Amado retomou e ampliou argumentos clássicos sobre o Brasil, de autores como Sylvio Romero (a presença fundante das tradições africanas – e indígenas, que Amado abordou em pequena escala - na constituição do país, junto com os elementos culturais europeus), Lima Barreto (a dignidade cultural e a capacidade intelectual dos afrodescendentes), Monteiro Lobato (a inclusão de monumentais bandeirantes e miseráveis caipiras numa mesma categoria racial, indicando a insuficiência interpretativa do critério de raça na interpretação da sociedade), Paulo Prado (a igual força de europeus, indígenas e africanos na definição psicológica de uma brasilidade), Mário de Andrade (a desimportância explicativa da marca racial biológica de nascença, em Macunaíma, e o sentido paralógico - e não pré-lógico - das tradições culturais africanas, em Música de feitiçaria no Brasil), Gilberto Freyre (as tradições africanas, indígenas e européias como legados culturais e não apenas herança biológica) e Câmara Cascudo (a presença negra, como tema e também núcleo de produtores culturais, na poesia oral)10.
49Tal balanço foi feito durante uma ditadura antipopular, submissa a uma geopolítica e que impunha ao povo seu suposto melhor destino.
50Reafirmar a altiva sabedoria popular como um poder foi colocar, com alegria, a ditadura em seu devido lugar : o vazio da violência. E também vencer essa ditadura, rindo dela como outra « merda em pó ».