1As Grazzi Ellas não é somente a descrição de um corpo em um palco, em uma casa antiga do centro da cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Reflexionar sobre o monólogo de teatro Grazzi Ellas, escrito e interpretado por Melissa Campus, sob a direção de Luan Almeida Sales, é um desafio de compreensão, sensibilidade, humanidade; e, sobretudo, de responsabilidade na tradução dos enunciados construídos no discurso teatral para “denunciar” as violências físicas, sexuais, emocionais que sofrem as crianças em seus entornos cotidianos, e as pessoas sexo genéricas diversas como as travestis. Na compreensão dos sistemas culturais, Irene Machado nos diz que os enunciados construídos no cotidiano, na realidade dos sujeitos, podem estabelecer vínculos de complementariedade entre eles. Assim, o trabalho de memória que Melissa Campus faz para construir a dramaturgia de Grazzi Ellas estabelece um vínculo entre a narração da experiência vivida e o discurso teatral, em que se configura uma relação dialógica (Bakthin, 2000) entre realidade e ficção para gerar atmosferas, mundos, momentos, ações que contam a vida de pessoas que transitam seus corpos e suas subjetividades fora do binário masculino/feminino. Em quase 60 minutos, Melissa Campus consegue relatar um assassinato, um estupro, uma relação mãe e filha, o trabalho sexual na rua, ritualizando processos atravessados pela dor das violências. Faz isso a partir de elementos que formam parte da vida das personagens como folhas de árvore, fogo, terra e água, que abraçam o corpo da atriz de formas diversas.
2Em 2018, um encontro realizado entre 24 e 26 de maio reuniu pessoas trans, travestis e transexuais, de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, em Pelotas. As delegações dos três estados do sul do Brasil tomaram as ruas da cidade para falar sobre políticas públicas de saúde, educação, arte, cultura, violências, vidas e mortes. Também lembraram os avanços na conquista de seus direitos. Além disso, o evento serviu para se abraçar, se encontrar, matar a saudade, sentir seus corpos entre corpos que se reconhecem entre si, não apenas pelas transições, mas também pelas resistências.
3Foi assim que durante três dias as pessoas travestis ocuparam espaços públicos, praças, restaurantes comunitários e universitários, palcos, auditórios, teatros, mercados. Mas, o estranhamento se deu pelo jeito que essa apropriação acontecia: sempre em grupo, quase nunca sozinhas. É desta forma que as condições de autocuidado e vigilância mútua geram o sentido de grupo, de proteção no coletivo. Assim o EU se arquiteta e se representa de modo conjuntural, ou seja, reage de acordo com os condicionantes do ambiente social. Quando as pessoas travestis estão em grupo, geram um senso de proteção e constroem uma identidade de grupo que lhes autorizam a gritar, falar alto, libertar-se do medo. Agora, se nos colocamos no lugar dos observadores, das pessoas que olham para elas, nas ruas da cidade de Pelotas, além de ver corpos individuais, olham um coletivo de corpos que interpela a norma “natural” do corpo masculino/feminino. Torna-se complexa a situação quando a população não consegue encontrar no seu imaginário “veículos de indícios” (Goffman, 2002) que lhes permita enxergar os corpos desconhecidos, o que leva os observadores a recorrerem aos estereótipos, ao preconceito, para justificar um estado de bem-estar. Segundo Goffman,
Se o indivíduo lhe for desconhecido, os observadores podem obter, a partir de sua conduta e aparência, indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que tenham tido como indivíduos aproximadamente parecidos com este que está diante deles ou, o que é mais importante, aplicar-lhe estereótipos não comprovados” (Goffman, 2002, p. 11).
4Fazendo uma inferência a partir da experiência de caminhar pelas ruas com pessoas travestis, acreditamos que a dificuldade de sentir que o corpo pode ser interpelado, a impossibilidade de compreender que o corpo não é um sistema fechado, faz com que esse corpo travesti sofisticado vire uma atração, um espetáculo, um delito, uma doença. Como afirma Goffman (2002), para manter a integridade individual e a norma social, quiçá o mais fácil seja desenvolver estereótipos para tomar aos corpos “objetos”, de modo que não sejam um perigo para a construção do EU individual e social, dentro da norma estabelecida.
5As pessoas travestis vão ocupando espaços e desafiando de algum modo o olhar social. Durante o evento em Pelotas, foi desafiante acompanhar e observar a capacidade de improvisação e adaptação delas ao meio. Organizaram bate-papos e apresentações artísticas com a finalidade de ocupar espaços para visibilizar a população trans, travestis transexuais. Ao contrário dos “processos de evitação” para preservar a fachada, do qual fala Goffman, as travestis não se limitam de nenhuma forma ao participar da cena pública. Tal é assim que elas mesmas geram condições pouco ortodoxas, e até arriscadas, de construir maneiras de se expor ao usarem seus próprios corpos para reivindicar a periferia, as resistências e a criatividade.
- 1 Se pode conferir o vídeo da apresentação de Pethiny em Pelotas em seu Instagram. Disponível em: (...)
6Durante o evento em Pelotas, embora estivesse previamente agendado um ato cultural, na sexta feira (25), às 18h, para convidar os moradores da cidade a participarem de diferentes atividades promovidas pela comunidade trans, o local tratado recebia outra apresentação: um concerto de música. Mas, elas não se deram por vencidas e ocuparam a rua em frente ao mercado público com caixa de som e, vestidas em seus melhores trajes, apresentaram à cidade de Pelotas uma montagem teatral com as atrizes travestis de Londrina: Melissa Campus e Lina E. Como elas falam, “as bichas abusadas” saíram à rua, com vestuários brancos. Melissa representou uma deusa, que desafiava o vento, o frio da noite e se envolvia nas luzes públicas dos postes. Depois dessa abertura, entrou no palco da rua a artista travesti performática Renata, com seu vestido vermelho, para interpretar canções de Cindy Lauper, Abba e fazer mímica com a canção “Não chores por mim Argentina” cantada em italiano. Ela falou, brincou e mexeu com o imaginário social sobre a construção do gênero do corpo, da discriminação e da violência, tudo com humor travesti, muito sutil e sofisticado. Finalmente entra no palco Pethiny1, uma travesti de 19 anos que faz funk e dançou com a canção Bixa preta, de Linn da Quebrada. Seu corpo preto se contorcia pela rua arrancando palmas da plateia. Assim, as travestis viraram sensação convertendo a noite fria em uma noite de cor, música e humor. Esse relato aqui apresentado, quiçá pobre em detalhe, mas muito rico na significação, permite dizer, a partir de uma perspectiva comunicacional, que aquele foi um encontro dialógico de sistemas de significação, onde as pessoas que andavam pela cidade viraram público improvisado para assistir intervenções artísticas que aportam à construção de um sistema cultural abrangente que vai ficar na memória coletiva.
7Segundo Iuri Lotman, “a cultura é no princípio poliglota e seus textos sempre se realizam no espaço de, pelo menos, dois sistemas semióticos. A fusão da palavra e a música (o canto), da palavra e o gesto (a dança)” (1996, p. 85, tradução nossa), assim como também podemos dizer que a cultura é dialógica. As trans, travestis e transexuais que participaram do evento também perceberam as reações de um sistema de cultura aberto, dialógico (Bakhtin, 2000), onde as expressões artísticas facilitam a circulação de sistemas de signos em oposição ou desconhecimento, para estabelecer o que Bakhtin chama “extraposição”, ou seja, o reconhecimento da identidade de uma cultura a partir dos olhos do outro (Machado, 2003). De modo que, essa configuração de ocupação de espaço público pode ser compreendida como um sistema cultural aberto das travestis, onde a criatividade, a espontaneidade e a experimentação entram no fluxo da comunicação cidadã para, às vezes, se inserir e, outras vezes, incomodar.
El intercambio dialógico (em sentido amplio) de textos no es un fenómeno facultativo del proceso semiótico. La utopía de un Robinson aislado, creada por el pensamiento del siglo XVIII, está en contradicción de que la conciencia es un intercambio de mensajes –desde el intercambio entre los hemisferios cerebrales hasta el intercambio entre culturas. La conciencia sin comunicación es imposible. En este sentido se puede decir que el diálogo precede al lenguaje y lo genera (Lotman, 1996, p. 20).
8Assim, a semiosfera vai se construindo, reconfigurando e ressignificando. As pessoas vão se afetando e se deixando afetar pelo intercâmbio das mensagens. É na semiosfera que as diferentes linguagens operam e é aí onde se produzem as contradições sociais. Nesse intercâmbio dinâmico de elementos, o espaço semiótico é uma realidade onde se estruturam as relações de identidade e diferença sem se sobrepor uma sobre a outra, já que, caso uma se colocasse sobre a outra, se romperia a relação dialógica, que é a base da construção de sentido.
9Com esse antecedente, vamos continuar com a reflexão do monólogo escrito e atuado por Melissa Campus. Pensando em uma semiótica da cultura, o contexto antes mencionado é instigante para reconhecer as condições e o entorno onde se apresentou a obra, já que foi parte de várias ações ativistas na cidade de Pelotas.
10Eram 19h, de um sábado, 26 de maio de 2018, e o frio do inverno que estava chegando fazia com que os corpos ficassem cobertos por abrigos, chapéus, luvas e cachecóis para fazer frente aos 7 ou 8 graus daquela noite. Enquanto aguardávamos pela artista, foi possível observar o Casarão dos Assumpção (construída entre 1891 e 1883), localizada em pleno centro de Pelotas. No quintal interno, no espaço aberto, se acomodavam cadeiras para umas vinte pessoas, em duas fileiras, e se improvisava o palco de teatro. Limitada pela parede, um canhão de luz em cada lateral, apontando para o centro, era toda a iluminação disponível. O público chegou depois das 20h, em sua maioria jovens estudantes universitários.
11Perto das 20h30 a obra começou. Se pediu silêncio. Uma música instrumental tocou e Grazzi entrou em cena. Com um caminhar pausado, simulando uma deusa, com um vestido preto comprido, com as costas descobertas, os cabelos loiros amarrados em um coque, em cada braço um recipiente e umas ramas. Deu início ao ritual. Colocou cada recipiente em uma lateral. Deixou o recipiente com água. Depois, colocou terra e disse: “A terra que é o corpo dela [Grazzi]”. Caminhou pelo palco com esse mesmo andar pausado. Colocou os joelhos no chão e ateou fogo, e disse: “o fogo que nos mantém vivos, que nos aquece, que nos deu a vida, que se reproduz”. O cenário estava pronto. A semiosfera da obra de teatro estava se configurando, assim o público estava à expectativa do futuro. O público iniciava uma experiência onde as fronteiras do espaço e tempo seriam modelizadas pela linguagem teatral. O frio quase invernal do quintal também foi parte da experiência, a esfera extra semiótica dinamizava o processo de percepção, enquanto a personagem criava a atmosfera da realidade artística.
12A obra continua, a atriz vai até o centro para colocar a cadeira e recosta uma boneca de pano, a representação de Grazzi. Assim, a boneca de pano que está presente, e às vezes, onipresente durante toda a obra, integra o sistema de significação e se transforma em uma grande metáfora da linguagem teatral, que participa como personagem permanentemente durante a apresentação. Segundo Iuri Lotman, as metáforas artísticas se encontram no polo oposto das metáforas linguísticas. “A metáforas-clisé comuns a algumas escolas literárias ou aos períodos determinados, as metáforas que passam gradualmente do campo trivial ao campo da criação individual ilustram diversos níveis de interseção de sentido” (Lotman, 1999, p. 35-36).
13Aqui, inicia um sentido de ritual onde os elementos: ramas, fogo, terra, água, vão participar de uma narrativa teatral. Se pode dizer que no teatro e, especificamente, na obra Grazzie Ellas o mundo não só se duplica, como se multiplica. A montagem se inscreve no denominado teatro pobre, desenvolvido pelo diretor polonês Jerzy Grotowski. A montagem prioriza a atuação, as ações corporais e a voz para gerar espaços e tempos diversos, com vários personagens, a ponto de, às vezes, a atriz nem conseguir captar o espírito de cada um deles, talvez pela rapidez das ações. A atriz representa ao mesmo tempo mais de dois personagens com quem interage, por vezes levando o espectador a se confundir nas transições das falas desses personagens. Em Grazzi Ellas, tanto o diretor como a atriz tentam levar ao máximo a proposta do teatro de Grotowski. Segundo Lotman, nenhum sistema funciona em isolamento e de forma unívoca. Os sistemas só funcionam se estão submersos num “continuum semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de diversos tipos e que se encontram em diversos níveis de organização” (1996, p. 11, tradução nossa) para conformar o que se conhece como Semiosfera. Nessa linha, podemos evidenciar como a memória de eventos violentos que aconteceram na realidade é traduzida para a linguagem do teatro e representada através de movimentos corporais, de ações, de textos orais. Todas essas semioses geram uma tensão dentro do palco, ao mesmo tempo que tenciona na zona periférica onde os espectadores permitem-se, ou não, romper suas linhas de fronteira para estabelecer relações de contato com diferentes níveis de tradução e de compreensão. “A fronteira do espaço semiótico não é um conceito artificial, é uma importante posição estrutural e funcional [...]. A fronteira é um mecanismo bilingue que traduz as mensagens externas à linguagem interna da semiosfera e vice-versa” (Lotman, 1996, p. 13, tradução nossa). De modo que, o que acontece no palco, além de tencionar as estruturas da semiosfera, também geram uma relação de interseção entre as fronteiras dos espaços culturais individuais.
14A obra continua sobre um mecanismo de memória das violências que se impregnam no corpo e na subjetividade das pessoas trans. Assim como Melissa Campus, outras pessoas, também, viveram agressões, pessoas que têm sonhos e desejos e que pela transfobia, essas vidas são perdidas. São cinco histórias que se entrelaçam e confluem, às vezes de forma caótica:
15A primeira história é a de uma travesti trabalhadora sexual, que diz adeus para sua mãe e vai para a rua. Às quatro da manhã ela consegue o único cliente da noite e vai fazer o programa. O cliente acaba por ser um assassino e a mata. O corpo é encontrado três dias depois, e os meios de comunicação matam uma vez mais, quando não reconhecem seu nome e sua identidade.
16A história dois é a de uma personagem que fala da vida com a sua mãe, e tomam chá. Performatiza várias ações, convida uma pessoa do público para fazer o papel de mãe, consegue que a pessoa ingresse no jogo cênico e constrói a personagem da mãe, a partir de uma improvisação.
17A história três é a de uma personagem infantil, um menino que é estuprado por um homem adulto. A criança pede ajuda a sua mãe, e esta não acredita nele. Os gritos de ajuda tencionam a cena. O peito da atriz fica descoberto, um gesto imprevisível, simbólico, que denuncia a invasão e o desamparo desse corpo que foi estuprado. Assim, se reflete no texto a convivência de duas fronteiras temporais, a memória do passado (a realidade de um sujeito) e a imprevisibilidade do futuro (o que vai acontecer no futuro imediato, durante a obra).
El futuro se presenta como el espacio de los estados posibles. La relación entre presente y futuro se configura en el modo siguiente. El presente es un estallido de espacio de sentido todavía no desplegado (Lotman, 1999, p. 28).
18Ainda com os peitos descobertos, se coloca sobre a cadeira, com as pernas para cima, semiflexionadas e abertas, e com uma mão protege seu pênis, ao mesmo tempo que grita, em ação de defesa “não, por favor, não... mãe, mãe...”. Esse é um primeiro momento de uma explosão que se esgota para dar passo à seguinte cena, onde se vai observar uma explosão maior, que vai dar sentido aos movimentos cênicos anteriores e vai desdobrar os acontecimentos para o final da obra.
El momento de la explosión es también el lugar de brusco aumento de informatividad de todo el sistema. La curva de desarrollo salta aquí a una vía completamente nueva, imprevisible y más compleja. Puede volverse el elemento dominante -que surge como resultado de la explosión y determina el movimiento futuro- cualquier elemento del sistema, o hasta un elemento de otro sistema, casualmente atraído por la explosión en la trama de las posibilidades del movimiento futuro. Sin embargo, en la fase siguiente, este elemento casual crea ya una cadena de acontecimientos predecibles (Lotman, 1999, p. 28, 29).
19A história quatro é a de uma travesti que faz trabalho sexual na Itália (dedução, porque os textos que declama são em italiano). Ela relata uma relação de poder entre a trabalhadora sexual e o cliente, onde a travesti recupera o poder colocando limites no seu corpo e relacionando com a finitude do tempo. Durante essa cena, a atriz tira a roupa toda, para ficar nua. Aqui a explosão maior da obra acontece não só pelo nu do corpo, mas também por toda a carga simbólica que vinha se acumulando durante a estrutura discursiva, uma série de acontecimentos violentos que irrompem na subjetividade do observador, até provocar esse confronto entre a semioses da obra e o pensamento do espectador. O corpo nu é um gesto de exposição ao perigo, um corpo exposto e rejeitado. O nu cobra sentido na estrutura semiótica da obra.
20Na história cinco a personagem tira a roupa toda, inclusive a calcinha, e aparece um nu em cena. A mão esquerda oculta seu pênis ao mesmo tempo que seus peitos, bunda e o corpo todo é exibido. Em um ato de desespero, bota os joelhos no chão e começa a se flagelar com as ramas nas costas. Agora os quatro elementos: ramas, fogo, terra e água, novamente cobram sentido na cena, e a personagem interage com eles. Depois de se flagelar e gritar por ajuda para a mãe, se desloca engatinhando pelo chão, sempre tapando o pênis, e vai até o lugar do fogo.
21Em frente ao fogo grita com desespero: “estanca essa sangria mãe”, e pega o recipiente vertendo sobre seu corpo a cera da vela quente. Continua até o outro recipiente.
22Em frente à terra grita: “Como doe mãe, não me deixe cicatriz mãe, eu tenho que ser perfeita mãe”, e passa a terra pelo corpo, pegando-a com as mãos e tocando seus seios redondeados. Continua até o último recipiente.
23Em frente à água (que está com gelo) grita: “Enzimas, proteínas, química... a vida mãe”. Pega o recipiente e derruba a água gelada sobre sua humanidade. A terra escorre pelo seu corpo.
24Ela se levanta, sempre tapando seu pênis, e vai até a cadeira. Pega a boneca de pano, senta-se e diz: Ela é Graziella, seu RG 2,4,5... Com a boneca junto a seu peito finaliza dizendo: “feliz encontro, feliz partida, muito obrigada”.
El momento de agotamiento de la explosión es un momento de inflexión del proceso. En la esfera de la historia éste no es solamente el momento de partida del desarrollo futuro, sino también el lugar del autoconocimiento en el que se empalman los mecanismos de la historia que deben clarificar a la historia misma aquello que ha sucedido. (Lotman, 1999, p. 29-30).
25O monólogo permite enxergar um trabalho da memória, onde a denúncia e a resistência nos contam realidades que habitam as pessoas travestis. Uma reflexão sobre o cotidiano de violências, angústias, dor e desejos, onde operam as vidas de trans, travestis, transexuais na atualidade. Segundo Lotman:
A memória não é um depósito de informação, mas sim um mecanismo de regeneração da mesma. Em particular, por uma parte os símbolos que se guardam na cultura, levam em si informação sobre os contextos (ou também as linguagens), e, por outra para que essa informação “se acorde”, o símbolo deve ser colocado em algum contexto contemporâneo, o que inevitavelmente transforma seu significado (1998, p. 111, aspas no texto, tradução nossa).
26Na construção do texto dramatúrgico que foi feito pela própria Melissa Campus, intervêm a memória, como um gesto de escavar no passado, traduzido e misturado com os acontecimentos cotidianos, para aportar à reflexão do pressente. Melissa pegou as memórias de algumas travestis e as juntou com a suas próprias para denunciar os atropelos e violências que terminam com a vida e com os sonhos de sujeitos que se autodefinem trans, travestis, transexuais, transgênero, homes trans... além da etiqueta, as pessoas sexo genéricas diversas continuam morrendo nas ruas, mas também continuam lutando e ocupando espaços que não foram feitos para elas, mas que agora também são delas.
27Uns dos elementos de maior relevância na representação da obra e da mesma linguagem teatral é o corpo, é esse espaço onde estão as marcas da memória, onde mora o desejo, se constrói a subjetividade que se evidencia através dos gestos, os movimentos, vestuários, posições, e o espaço onde guardam as violências, os disciplinamentos e também as não violências. Se pode pensar o corpo como esse corpo utópico que Foucault descreve: “Meu corpo é como a Cidade do Sol: não tem lugar, mas a partir dele surgem e irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos” (Foucault, 2008, tradução nossa).
28O corpo opera na complexidade, está em um continuum semiótico de se colocar na centralidade e nas fronteiras da semiosfera, é um sistema não feito, um sistema aberto, sempre dinâmico. Ainda que no imaginário social o corpo seja percebido como um sistema fechado, funcional, estruturado, na realidade, o corpo pode ser o grande desconhecido. “O corpo na sua máxima individualidade reflete a identidade que viu nascer nas entrelinhas do discurso do Outro, no reflexo microscópico que o olho do Outro proporciona” (Campelo, 1996, p. 67). O corpo não é uma dimensão individual, ele se constrói na relação com os outros. O corpo aporta na configuração dos sistemas culturais, a partir da compreensão do corpo como uma construção simbólica, mas não como uma realidade em si mesma (Le Breton, 2016). Seguindo essa linha de pensamento, é possível acreditar que os corpos travestis causam estranhamento quando conseguem se revelar e desdobrar em outros corpos, e traduzir-se fora da norma binária masculino/feminino.
29O corpo na obra Grazzi Ellas se mostra como um corpo estilizado, modelado, um corpo ritualizado nos seus movimentos. É um corpo inserido em uma estrutura semiótica que vai além do espaço teatral. Quando a atriz realiza sua performance e descobre seu corpo, a sensação não se dá só pela nudez, se dá porque é um corpo travesti, um corpo estilizado, e modelado com um pênis que está sendo protegido do olhar externo. Ou seja, segundo o imperativo hétero normativo, o que precisamos proteger são os órgãos sexuais, porque eles simbolizam a intimidade do corpo no imaginário social. O que o sujeito protege para si é a representação do sexo no corpo, as outras partes do corpo podem ser expostas de jeito menos doloroso. Ninguém escapa da simbologia que tem a genitália na cultura moderna ocidental, o símbolo do pecado, da vergonha, da intimidade, da sexualidade, do desejo. O corpo mítico, que doméstica a sensualidade e o desejo apagando a carga simbólica que também representa a vida.
30Para fechar essa reflexão do monólogo Grazzi Ellas e a importância do corpo na obra, gostaríamos de relevar dentro da montagem a interpretação teatral, as mudanças de estados de ânimo para representar a vítima e o vitimador, demostra um trabalho técnico, digno de reconhecer. Assim como a representação dos quatro pontos que poderiam simbolizar os quatro pontos cardiais, os quatro cantos da terra, a cruz, o quadrado. Nesse espaço do quadro, a atriz colocou em cada canto um elemento: ramas, fogo, terra e água, que dão o início e o fechamento da obra. Esse fato lembra-nos o texto de Le Breton (2016), quando fala da polissemia do corpo e faz referência à relação que guarda o microcosmos do corpo com os elementos da natureza.
31Aqui fechamos o relato de um momento de vida que foi capaz de desestabilizar, questionar, cobrar e provocar um estranhamento, e levantar muitas questões, não só sobre o corpo das pessoas travestis e as violências que habitam, mas também sobre as experiências extremas que na arte pode experimentar os modos em que essa construção da realidade no palco pode ser ressignificada no cotidiano do sujeito. Os modos em que a arte age nas estruturas semióticas e vice-versa, as dificuldades que temos para desestabilizar os sistemas porque, às vezes, acionamos mais a reprodução do que o questionamento.