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Dossier thématique: Ecritures scéniques et dramatiques d’Amérique latine : quelles émancipations ?
Décoloniser les corps et les imaginaires

Entre escritas e usos dos corpos: a decolonização dos afetos no, através e além do teatro

Martha Ribeiro

Resúmenes

As narrativas de intimidade podem nos ensinar a enfrentar os dispositivos biopolíticos de controle de nossa produção imaterial, especialmente nossos afetos e desejos, porque são um convite luminoso para a invenção ou melhor, para a reinvenção radical do sujeito. O que é a invenção se não o questionamento das obviedades? Da ilusão material do mundo? De nossas construções e ideias de mundo? A experimentação de si tanto no biodrama, da artista argentina Vivi Tellas, como nos objetos relacionais, da artista brasileira Ligia Clark, são trabalhos investigativos que podem retomar, ainda que de forma sempre instável, a força vital do sujeito e da arte, juntos amalgamados. Pensar tudo outra vez, revisitar-nos, é criar tensionamentos no sistema de representação e suas “realidades” intimidantes, inventando novas possibilidades de intervenção no mundo. Abrindo rasgaduras, fissuras, brechas no real, o biodrama e os objetos relacionais abrem passagem para o corpo-teatro e o corpo-bicho, numa promessa de derrubada dos modelos hegemónicos produtores de corpos. Decolonizar, desmercantilizar e desprivatizar os corpos da forma, da especificidade, desobstruindo o acesso ao informe e à produção experimental conforma um poderoso debate geo-político entre as duas artistas.

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Se a perda da individualidade é de certa maneira imposta ao homem moderno, o artista lhe oferece uma revanche e a ocasião de encontrar-se (Ligia Clark)

Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro (Antonin Artaud)

  • 1 Lygia Clark, carta a Mário Pedrosa, 1967; in Sonia Lins, Artes, 1996. grifo meu
  • 2 Os Objetos Relacionais da (artista) propositora Lygia Clark é uma obra realizada entre 1976 a 19 (...)
  • 3 Em Las Personas (2014) a diretora e criadora do Biodrama Vivi Tellas põe em cena não os atores, (...)

1“Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as realidades das contradições?1, escreve Ligia Clark a Mário Pedrosa em 1967. Destaco essa interrogação da artista justamente por descrever de forma muito aguda a metodologia que venho buscando para pensar e problematizar no campo das artes o corpo enquanto um campo de batalha de forças que o atravessam, na busca de uma ética dos afetos decolonizadora. As escritas e os diferentes usos dos corpos nas artes nos interessa na medida em que problematiza o corpo enquanto potência de transmutação e refazimento, pois todo corpo se faz com, daí seu poder de gênese. Esse com pode ser traduzido nas relações materiais e imateriais, não orgânicas ou orgânicas de afectibilidade do corpo, no poder do corpo de afetar e de ser afetado. Todo corpo produz linguagem e um campo de virtualidades, de ressonâncias, campo que Antonin Artaud nomeou como corpo sem órgãos, corpo que se faz duplo do corpo orgânico. Todo corpo é uma multiplicidade, todo corpo é uma singularidade, todo corpo é um dentro e um fora, todo corpo é também virtualidade ou um não-corpo que cria conexões subterrâneas, ainda invisíveis, com as forças externas que se dobram sobre ele. Certos experimentos artísticos, e aqui iremos nos deter nos Objetos Relacionais da brasileira Ligia Clark2 e no espetáculo/biodrama “Las personas” da artista argentina Vivi Tellas3, criam paisagens (ambiências) que formam fissuras no sistema de representação, colocando em relevo as forças de espessamento dos corpos. Criando densidade e opacidade no compartilhamento de vivências, esses experimentos modificam a posição do olhar ao inventar ou possibilitar novas relações, novas percepções e consequentemente diferentes afectibilidades, ampliando o que denomino como mapa de afetos do corpo. Essas experiências tão diferentes se aproximam, ao nosso ver, em seu desejo de convocar um tempo do olhar: um tempo que reivindica um esquecimento ou mesmo um esvaziamento de nossas marcas perceptivas ao mesmo tempo em que abre passagens para outras conexões, mais “selvagens” talvez. Essas experiências convocam um olho não especialista e mais afetivo, para a constituição de um corpo autopoiético. Limpar o olho para convocar esse tempo do olhar, na duração e intensidade das coisas ínfimas do mundo, é o que iremos pensar neste ensaio, convocando o corpo-teatro e o corpo-bicho.

  • 4 Criado em 2010 pela pesquisadora, pedagoga e diretora teatral Martha Ribeiro, o Laboratório dese (...)

2Em minhas proposições no Laboratório de Criação e Investigação da Cena Contemporâneo que coordeno na Universidade Federal Fluminense4 busco diagnosticar os efeitos ou sintomas de uma cartografia social, cultural e política nas marcas de linguagem que se inscrevem sobre os corpos dos atores, no uso que fazem dos corpos e nas relações com outros corpos. Busco entender cada corpo como uma teatralidade em curso, uma resposta mais ou menos criativa ou reativa ao sistema econômico-político-social, e também como um corpo capaz de se tornar um corpo-acontecimento ou um corpo-teatro: um corpo que não é nem corpo blindado e nem corpo fantasma, e sim um corpo-poroso, permeável, capaz de inventar um novo campo ou mapa de afetos, potencializando e afirmando a vida na (re)invenção e no cuidado de si. Entendo a experimentação com os objetos relacionais e as narrativas do biodrama como um possível caminho para retomarmos, ainda que de forma sempre instável, a força vital do sujeito e da arte, amalgamados. É neste duplo experimento dos contraditórios - arte(vida) - que vislumbramos um terreno fértil para novas redes de criação que possam tecer linhas de enfrentamento de uma economia biopolítica. Fortalecendo cartografias de afetos, com palavras-afeto que resistam aos agenciamentos e às práticas coloniais, torna-se possível superar as marcas de rebaixamento impressas nos corpos (as realidades intimidantes). O teatro, com seu pensamento próprio, pode ser um dispositivo, uma condição metodológica para a decolonização dos nossos corpos. Quando digo pensamento próprio, quero dizer que o teatro pensa o mundo através da invenção, e na montagem/composição das imagens experimenta essa invenção no mundo, produzindo acontecimento. O teatro é acontecimento: teatralidade (linguagem) e performatividade (exposição) que friccionadas produzem uma experiência real (o acontecente). O teatro como um dispositivo para se experimentar relações na simultaneidade de tempos heterogêneos (passado-futuro-presente), colhendo o que de imprevisível e de inabitual pode ocorrer no acontecimento, no entendimento do corpo como um campo de contradições.

3Entender o corpo como um campo de contradições e com força de gênese se faz possível no ponto exato onde encontramos o teatro e naquilo que existe entre nós, no que vibra em e entre nós. Penso que os objetos relacionais de Lygia Clark se configuram como dispositivos para criar brechas nas realidades intimidantes, abrir espaços para uma reinvenção ou melhor para um ensaio de nós, cuidadoso. Toda relação potente é também uma invenção de tempo, uma escuta-teatro, onde voltamos a nos aventurar. Os objetos relacionais assim como o biodrama nos levam à um ensaio de nós, provocando desafios ao corpo teatral. A aventura é sempre anterior à constituição e afirmação do teatral, é uma aposta na experimentação, naquilo que ainda não está totalmente estruturado, acordado. Essa aposta abre passagens para um novo tipo de comunicação mais afetiva e menos lógica. Quando Grotowski diz que a maior aventura é o ensaio, se percebe que para o pedagogo teatral é justamente no ensaio que algo acontece, é ali que pode ocorrer o teatro, esse acontecente. O ensaio é a brecha no teatral, é esse movimento entre o perder-se e o encontrar-se, experimentação que se põe em desacordo com o teatral instituído. Este “não sei” próprio ao ensaio é o que pode dar passagem ao corpo-bicho ou à verdade de um corpo sem órgãos ou à transmutação de um corpo teatral que não nos serve mais. No ensaio toda escrita é reescrita, triturada, apagada, remodelada, devorada, cuspida, escarnada no acontecer do ensaio. Toda palavra-escrita, no ensaio, se volta contra um autor, transformando-se em palavras-afeto que reivindicam sua emancipação como palavras-bicho. Para Suely Rolnik, Lygia quer, com seus objetos relacionais, “resgatar a vida em sua potência criadora, seja qual for o terreno onde se exerça tal potência”, e completa, “Ele, homem, agora é o "bicho" e o diálogo é agora com ele mesmo, na medida da sua organicidade e também na medida da magia que ele pode emprestar de dentro dele mesmo”5. E tal desejo se verifica também na proposta do biodrama, desenvolvido por Vivi Tellas, na escuta ao que temos de teatral em nossas vidas e na busca pelo teatro (pela magia) nas vidas dos que realizam a obra junto com ela, normalmente não atores, vidas anônimas e invisíveis.

  • 6 O projeto Conversas de Laboratório com a América Latina” recebeu na primeira série de conversaçõ (...)

4Corpo-bicho, corpo-teatro, corpo sem órgãos: arte sem arte, teatro sem o teatral? O que resta nesta operação de subjetividades? Se nos é difícil dizer sobre o que há, sabemos dizer o que não é. O que resta não é uma estrutura “copiável”, da ordem do disciplinar, é algo que se instaura na ordem do precário, do não automatizado e não automatizável, é algo da dimensão do vivo. O que resta não é capturável, por se fazer na singularidade do acontecimento, na volatilidade e fluidez do agora. Rolnik identifica em Lygia o desejo de fazer de toda existência uma obra de arte, tal visada também identifico em Vivi Tellas: (1) na busca pela forma instável do biodrama; (2) no campo das narrativas do contraditório; (3) nos corpos não domesticados dos não atores. Em minha conversação com Vivi Tellas, no projeto remoto que dirijo e faço a curadoria “Conversas de Laboratório com a América Latina"6, ela diz que pensar o biodrama foi uma forma para encontrar as pessoas. Sua experiência de vida, quando jovem, durante a Ditadura Militar Argentina, a colocou de frente a um regime com práticas extremas de violência sobre os corpos, o necropoder. Nesses regimes autoritários, vidas não valem nada. Entre corpos dilacerados, mutilados, torturados e corpos desaparecidos, um outro tipo de violência também se infiltra, quebrando os corpos lentamente, incidindo sobre sua força vital, os emudecendo: a violência biopolítica do descarte de vidas, onde qualquer um pode tomar o seu lugar, onde vidas se tornam invisíveis e apagáveis. Esse tipo de experiência extrema a impulsionou para fora de si, na busca pelo outro. Sair do monólogo individual da criação dramatúrgica e ir ao encontro do outro, onde toda vida importa, é o que faz o biodrama: dar relevo à vida do outro, em sua dimensão singular e única de uma densa experiência. O que existe entre as pessoas? Qual é a língua própria? O problema singular? São perguntas-chave de Vivi Tellas. O biodrama também se configura nesta experiência de transformação para o escritor/dramatúrgico, que no fora de si e no encontro com o outro, com outras realidades, subjetividades e outros pontos de vista, exercita sua escrita numa outra língua, uma língua que se faz polifônica, no movimento infinito de palavras-afeto. As palavras-afeto são as únicas que podem nos juntar em torno de uma verdade ética, no combate à violência biopolítica contemporânea.

“[…] a função dos objetos de Lygia não é a sensibilização ou a liberação catártica do corpo próprio como fonte de prazer, nem a expressão ou a constituição de uma imagem do corpo como fonte de unidade psíquica, nem o resgate das tais representações reprimidas que se encontrariam num arquivo secreto. Ao contrário, a função destes objetos é promover a abertura na subjetividade para um além do humano: o autêntico bicho (o vivo)”. (ROLNIK, op. cit.)

5A função dos objetos abriria essa possibilidade de "adquirir a liberdade de fazer outras dobras”, diz Rolnik. Ao meu nosso ver, a principal visada de Lygia é abrir passagem para a criação de um novo mapa de afetos, novas dobraduras no processo de subjetivação, ativadas na relação dos corpos com os objetos. Os objetos e os relatos do biodrama me aparecem como um disparador para uma nova escritura, cuidado e invenção de si, um rascunho rizomático desenhado sobre as marcas de violência deixadas em nossos corpos. Esse relevo rascunhado sobre causa instabilidade no já conhecido, confunde suas linhas, devorando-as, atravessando-as, propondo diferenças e diferentes modos de existir, aumentando o poder de afectibilidade dos corpos e a potência vital necessária para o enfrentamento das marcas de uma biopolítica. Tal perspectiva, de afectibilidade dos corpos, foi estudada por Spinoza em sua Ética, nos alertando sobre os bons e os maus encontros, produtores de alegria ou de tristeza, aumentando ou diminuindo nossa força vital. Diante disso, se faz necessário pensar antes de tudo no corpo, em suas dores, em seus encontros, para buscar no biodrama e nos Objetos Relacionais o dispositivo processual de decolonização do sujeito para o refazimento do corpo, isto é, de seu mapa de afetos. Entendo essas experiências íntimas como um laboratório radical de subjetividades: corpos inquietos, em desassossego na invenção de novas linhas, cartografias e mapas de afeto. É na invenção de uma nova escritura sobre os cortes profundos e marcas da violência deixadas em nossa subjetividade que podemos decolonizar nosso pensamento, nosso corpo e nos aventurar: “perder-se é um achar-se perigoso”, nos diz Clarisse Linspector. Habitar o inabitual e afirmar o poder da vida como arte, como criação, e enfrentar as forças que tentam expropriar e extorquir a vida é o convite que nos fazem os objetos e o biodrama: um mergulho que ultrapassa o entendimento.

6Artaud, ao seu modo, também denunciou tal incorporação de forças externas na formação das subjetividades. Essas forças externas ao indivíduo, os agenciadores do sistema político, social, econômico e dos sanatórios, configurados no "deus ladrão” artaudiano - força responsável por uma "palavra soprada" que furta, antes de nascer, o pensamento próprio - formam o duplo de Artaud ou a “dobra” do processo de subjetivação. A subjetivação seria, conforme nos diz José Gil, uma incorporação de forças: “[…] entre um sistema institucional de poder e de saber e as forças do homem livre estabelece-se uma relação, de onde resultará uma captura das forças do indivíduo pelas forças do sistema” (Gil, 2009, p.23). O que se nomeia como biopoder, literalmente poder sobre a vida. Claro que nem tudo será absorvido pelo corpo, nem tudo lhe será permeável, mas algo se configura na fala de Gil e de Artaud, que somadas se apresentam como de grande importância para pensar essas experimentações como dispositivos decolonizadores. Algo interessante se estabelece entre essas ideias, que lança a inevitável pergunta: qual o poder do corpo, diante dessas forças? ou, o que pode um corpo? Um corpo não existe sozinho, ele se forma no encontro, na relação com outros corpos, logo seu poder está em afetar e ser afetado. Como afirma Pelbart, à partir de Nietzche e Deleuze: “um corpo não cessa de ser submetido aos encontros, com a luz, o oxigênio, os alimentos, os sons, as palavras cortantes. Um corpo é primeiramente encontro com outros corpos” (2007, p.62 e 63). Mas nem todo encontro é alegre, nos diz Spinoza, alguns encontros diminuem nossa força vital. Por outro lado, é necessário aceitar nossa vulnerabilidade às forças, é necessário certa permeabilidade, pois um corpo blindado é um corpo que renunciou à vida: viver é em certa medida ser passivo, ser permeável ao atravessamento das forças, dos afetos, inclusive os tristes. Um corpo anestesiado é um corpo morto.

7A angústia de ser forçado a habitar um corpo anestesiado foi vivenciada de forma muita intensa por Artaud. Tanto na crítica ao teatro de sua época, como na experiência extrema vivenciada por ele nos sanatórios, nos eletrochoques, nas ameaças de lobotomia. O medo de perder a força de afectibilidade do corpo, isto é, seu poder de gênese, criatividade e afetividade que o torna capaz de seu próprio refazimento, reverberava de maneira profunda em seu corpo tantas vezes quebrado. A ameaça de desaparição do poder do corpo (de afetar e de ser afetado), seu desligamento com a intervenção cirúrgica da lobotomia, é o assassinato do corpo sem órgãos - definição artaudiana para um corpo-afeto imanente, corpo vibrátil. Destruir ou apagar o mapa de afetos, cartografia pulsante do corpo sem órgãos, é quebrar o corpo, é separar o corpo-organismo do corpo sem órgãos, reduzindo a vida à sua dimensão biológica. É fazer da vida uma sobrevida. A morte do corpo sem órgãos é essa perversão extrema de uma morte em vida, arrastando a vida para o umbral da morte. A violação e colonização extrema do corpo não se dá na eliminação do corpo, mas no processo de mantê-lo vivo, reduzindo-o aos seus organismos, à sua dimensão orgânica de morto-vivo. O que resta nessa economia de uso dos corpos pelo biopoder, desta violência extrema sobre a vida, é o corpo fantoche, o corpo-zumbi, habitante de lugar nenhum. Tal mecanismo, produz uma desfiguração do corpo-afeto, bloqueando toda passagem, todo nascimento de novos embriões de futuro, fundamentais para um recomeço:

“[…] estamos todos reduzidos ao sobrevivencialismo biológico. Estamos todos à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas-de-vida de baixa intensidade, submetidos à mera hipnose, mesmo quando essa anestesia sensorial é travestida de hiper-excitação” (PELBART, 2007, p. 61).

8Por outro lado, temos um corpo que se levanta contra toda essa servidão aos organismos de poder, um corpo que não aguenta mais ser colonizado e arrastado para esse estado de sobrevivencialismo, como denunciado por Pelbart, um corpo que não aguenta mais esse estado anestesiado. Falamos do corpo desejante, do corpo sem órgãos, do corpo obra de uma crueldade no sentido artaudiano, corpo poroso à vida, revestido por uma aura de afetividade, pura intensidade: corpo-teatro, corpo-bicho, corpo biopotente. Tanto o biopoder como a biopotência incidem sobre o corpo, transfigurando-o, mas há uma profunda diferença entre as transmutações. No biopoder, a decomposição do corpo se dá por uma manipulação da vida, por um poder externo de extorsão da vida, colonizador. A biopôtencia, que é a potência da vida, se dá na ordem do desejo, de uma transfiguração que se dá pela pulsão: transmutação de um corpo inventor, autopoiético, que se experimenta, um corpo não blindado, poroso às forças internas e externas que o atravessam (mas não todas, indiscriminadamente). O corpo sem órgãos, corpo-bicho, corpo-teatro (corpo-acontecente) são convocados no biodrama e nos Objetos. Esses corpos vitais abrem espaços em nós e refazem nossa engenharia subjetiva à partir da experimentação, aumentando nossa potência vibrátil, relacional. Um corpo capaz de se refazer na economia das forças que o atravessam, inventando novas conexões e liberando novas passagens, alianças e conexões subterrâneas para que a vida persevere. Mas não como uma sobrevida, fundamentada no ressentimento, mas como afirmação cruel da vida, isto é, da necessária transfiguração que emana do poder de afectibilidade dos corpos. O corpo como um campo de batalha de forças que o atravessam e que o lançam ao mundo: “O poder sobre a vida e as potências da vida. São como o avesso um do outro” (PELBART, 2007, p.58).

9Importante ressaltar, junto à Suely Rolnik, que a resposta às forças do biopoder não é da ordem de uma reatividade, que indica um sujeito em bloco, blindado, colonizado e triste, incapaz de escutar o alarme vital e agir afirmativamente: a reatividade é contrária à pulsão. Estamos diante de dois tipos de micropolítica do sujeito: a ativa e a reativa. A micropolítica do sujeito em processo afirma a vida, em sua vital potência de transmutação, é uma micropolítica ativa, de um sujeito que se põe em obra, num processo de refazimento constante. Neste sujeito se verifica um corpo ativo e passivo ao mesmo tempo, um corpo vibrátil. O corpo sem órgãos é esse dispositivo das afectibilidades, que traça o que eu chamo de mapa de afetos: uma cartografia nômade onde nasce por todo lado novos embriões de futuro, isto é, novas formas de vida, que ultrapassam os agenciamentos, os cálculos e a economia dos corpos, justamente por sua permeabilidade ao acontecimento, que impede a conservação de formas mortas. Não é suficiente denunciar os maus encontros, não basta revelar as opressões e o sequestro da vida pelas forças hegemônicas do sistema capitalístico-racionalizante-branco-falo-ego-cêntrico, não basta combater um inimigo externo e abstrato. É necessário reconhecer as formas violentas de colonização do pensamento e o inimigo que introjetamos dentro de nós, que nos rebaixa e que nos rouba as palavras-afeto. Como combater esse inimigo? Penso que uma das estratégias está no reconhecimento do que temos de teatral, de familiar, de reativo e de colonizado, e na aposta de uma reinvenção de si que se dá no confrontamento deste teatral que carregamos em nosso corpo. Não negar nossa vulnerabilidade às forças que se dobram sobre nossos corpos e com as quais construímos algo de nós - o que estamos chamando aqui de teatral - é incontornável para esse reconhecimento e enfrentamento do inimigo introjetado. Perceber o corpo em sua porosidade, no processo de um devoramento seletivo, tácito, mas sem dissolver as contradições, se aventurando numa paisagem conflituosa, um ecossistema de lutas, alianças, filiações e conexões subterrâneas, é o que nos convoca e nos lança o biodrama e os Objetos Relacionais.

  • 7 Minha tentativa gráfica “arte(vida)” é pensar esse campo de forças contraditórias, como o dentro (...)

10O biodrama os Objetos Relacionais inscrevem os corpos no cenário limítrofe de arte(vida), assumindo a contradição como desafio: é nesse campo de forças do contraditório que uma diferença pode eclodir. É nessa fricção arte(vida)7 que algo afirmativo vem romper com as realidades intimidantes. Aqui busco como imagem a centelha: partícula de fogo e luz que salta de um corpo eletrizado, vibrátil. Vejo nessas experimentações de intimidade inventiva e pulsante um campo de forças estratégico para o processo de decolonização. Um campo de resistência à captura epistemológica e simbólica do sujeito, por nos devolver a palavra, por nos permitir falar em nome próprio, mas na inscrição de uma coletividade, de um comum, na partilha de uma situação e condição comum, nossa “comum terrestritude”, conforme expressão de Gramsci. A visada micropolítica dessas operações pode ser observa no biodrama Las Personas, no qual Vivi Tellas põe em cena os trabalhadores de um importante teatro argentino, o Teatro San Martin. Com seu gesto, a artista reorganiza a partilha do sensível, desestabilizando a estrutura lógica do sistema de representação que informa com sua inabalável “certeza” quem deve ocupar os lugares em um acontecimento teatral. Ao mostrar outras subjetividades que participam do acontecimento teatral, invisibilizadas pela obviedade de um senso comum colonizado e colonizador que repete sem pensar que o palco é um lugar reservado aos artistas (sem questionar o que se chamou de artista), Tellas coloca toda essa ordem ao avesso, desencapando os fios secretos de uma realidade de partilha do sensível nada democrática e muito colonizadora. Como disse uma vez Duchamp, ser um artista é um fator humano, mas ser reconhecido como um artista é de outra ordem. Se trata de uma divisão que obedece à um regime que não autoriza a arte como uma dimensão da vida.

11O trabalho de Tellas é um ótimo exemplo para a compreensão da potência micropolítica que pode ter o teatro, com força para desestabilizar uma realidade dada como certa. Ao irmos a um evento teatral, dificilmente nos lembramos dos trabalhadores e técnicos que compõe essa estrutura, mas eles existem e estão em nosso entorno, ainda que mal consideramos sua existência. Esses corpos apagados fazem parte do acontecimento, junto com os atores e o público. Reconhecer esses corpos é propor uma nova comunidade do sensível mais democrática, investindo contra os lugares prefixados, tornando mais intensa nossa experiência de convívio no teatro. Las personas nos permite ver esses corpos apagados, revelando a arte como um fator humano em sua radical oposição à ideia hegemônica de uma suposta realidade teatral: acerto coletivo e mudo que imprime e replica agentes e mecanismos autoritários, próprios ao regime colonizador no qual estamos inseridos. O trabalho provoca a desestabilização das certezas, embaralha as divisões, desnaturaliza as posições, na qual nos informa que o teatro é a arte do ator, do diretor ou do dramaturgo. Como já dizia Boal, “Todos podem fazer teatro, até os atores”. Frase lapidar contra-hegemônica de uma ideia de arte. O teatro pode atuar questionando as maneiras estabelecidas e afetivas de se entender o teatro, refutando modelos e as “divisões do sensível” introjetadas como óbvias, fazendo aflorar novas subjetividades e novas perguntas. Tal é o gesto micropolítico do biodrama, que em seu desassossego amplia o campo do sensível e abre espaços para novos pontos de vista, novas realidades e invenções de combate aos manejos do poder instituído.

12Toda essa movimentação, própria ao corpo vibrátil e sem órgãos, causa mal estar. E frente ao mal estar algo de muito poderoso pode acontecer: a invenção afirmativa da vida. E é justamente essa força de invenção que o biopoder busca escravizar para si, parasitar, criando armadilhas e ilusões para contornar ou colocar para debaixo do tapete o mal estar. A pergunta como enfrentar o mal estar? Sem apagá-lo ou silencia-lo? Só pode ter uma resposta: Habitando-o. Não fazer do corpo um corpo-fantasma ou um corpo-blindado, mas um corpo vibrátil. Entrar neste espaço, onde se articula o mal estar. Não negar nossa vulnerabilidade às forças, para usar uma expressão de Rolnik, e buscar novas estratégicas que nos conectem de forma mais afetiva, sem dominação e sem submissão. Buscar zonas de contato, de fricção entre as contradições sem dissolvê-las ou apagá-las. Em outras palavras, entendo essas experiências de intimidade como um dispositivo potente para a construção de novas relações com a dor, para resistirmos, para re-existirmos às realidades intimidantes. Ouso dizer que o biodrama e os objetos relacionais na sua relação com o real e na sua relação com o teatral, faz o real funcionar como um “imperativo aberto à possibilidade de uma emancipação” (BADIOU, 2017, p.12). Limpar o olho, como disse mais acima, é também abrir zonas de penumbra, de sombra e de escuridão na luz cega da hipervisão colonizante. Para Lygia, nas palavras de Rolnik:

[…] deixar-se descosturar e costurar pelo fervilhar do trabalho subterrâneo das forças/fluxos de nosso bicho, germinação que se opera em silêncio e que pede um corpo que venha encarná-la, um corpo de pensamento, de arte, de existência, etc. Lygia nos propõe um modo antropofágico de subjetivação: o bicho devorando o homem, outro homem nascendo desta devoração e assim ao infinito (op.cit.).

13Ao facilitar o fluxo do contraditório, essas experiências podem nos ensinar a enfrentar os dispositivos biopolíticos de controle de nossa produção imaterial, especialmente os afetos e desejos, justamente porque são um convite para uma reinvenção radical do sujeito. Invenção e re-invenção da intimidade que lança os dados para a denuncia de toda arbitrariedade dos processos de subjetivação que formam a subjetividade. Ao propor seus próprios agenciamentos neste costurar e descosturar inventa-se com os experimentos um corpo destinado ao refazimento: corpo-teatro, corpo-inventor, corpo-bicho, corpo sem órgãos. E como dizia Manoel de Barros, “tudo que não invento é falso”. Pensar tudo outra vez, revisitar-nos como promessa de derrubada dos modelos hegemônicos, visando a decolonização, desmercantilização e desprivatização dos corpos, num modo de ação que se levante contra os enganosos e ilusório acertos consensuais que apagam imaginários e paisagens.

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Bibliografía

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Notas

1 Lygia Clark, carta a Mário Pedrosa, 1967; in Sonia Lins, Artes, 1996. grifo meu

2 Os Objetos Relacionais da (artista) propositora Lygia Clark é uma obra realizada entre 1976 a 1981, com algumas incursões até 1984.

3 Em Las Personas (2014) a diretora e criadora do Biodrama Vivi Tellas põe em cena não os atores, mas os trabalhadores de um importante teatro argentino, o Teatro San Martin.

4 Criado em 2010 pela pesquisadora, pedagoga e diretora teatral Martha Ribeiro, o Laboratório desenvolve suas atividades no âmbito do Departamento de Arte e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Todo material e documentação do Laboratório podem ser consultados no canal YouTube do Laboratório (lab_uff) ou na página https://www.facebook.com/labcriacaocenacontemporanea.

5 Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/estadodearte.pdf. Acesso em 01/12/2020

6 O projeto Conversas de Laboratório com a América Latina” recebeu na primeira série de conversações, sobre o tema Territórios disruptivos: o corpo-teatro em tempos de isolamento” o professor titular em história de teatro e diretor do instituto de artes do espetáculo da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Jorge Dubatti; a diretora teatral argentina, criadora do biodrama, e professora na pós-graduação de Dramaturgia da Universidad Nacional de las Artes, Vivi Tellas; o premiado dramaturgo e diretor teatral franco-uruguaio, autor do livro Autoficción: una ingeniería del yo”, Sergio Blanco; o curador, crítico, historiador de arte, renomado especialista em estética e arte latino-americana, o professor Ticio Escobar, que abriu o novo ciclo de conversas, sobre o tema Arte e Territórios: formas impertinentes e escritas do corpo”. Sobre esse último tema, encerrando as atividades do projeto para o ano de 2020, recebemos a curadora independente e professora-pesquisadora da Universidade autônoma Metropolitana do México, referência nos estudos das teatralidades latino-americana no contexto da violência, a cubana Ileana Dièguez. Todos os debates estão disponíveis no canal YouTube do laboratório (lcicc_uff). O debate com a artista argentina Vivi Tellas e a pesquisadora e diretora teatral Martha Ribeiro foi realizado em 22 de julho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cJ6fyAS_P58&t=5792s

7 Minha tentativa gráfica “arte(vida)” é pensar esse campo de forças contraditórias, como o dentro e fora de uma fita de moebius, sem perder a diferença entre os termos e sem dividi-los. E, sobretudo, mostrar nesta imagem que a vida quer arte como a arte quer vida. E nesta fricção, nesta cópula, nasce uma centelha, a diferença eletrizante.

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Para citar este artículo

Referencia electrónica

Martha Ribeiro, «Entre escritas e usos dos corpos: a decolonização dos afetos no, através e além do teatro»Amerika [En línea], 21 | 2021, Publicado el 01 marzo 2021, consultado el 14 diciembre 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/amerika/12539; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/amerika.12539

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Autor

Martha Ribeiro

Universidade Federal Fluminense (programa de pós graduação em estudos contemporâneos das artes)melloribeiro.uff@gmail.com

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