CASTRO, Rosana; ENGEL, Cíntia e MARTINS, Raysa. (Orgs). Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília: Sobrescrita, 2018. Ebook: http://www.dan.unb.br/
CASTRO, Rosana; ENGEL, Cíntia e MARTINS, Raysa. (Orgs). Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília: Sobrescrita, 2018. Ebook: http://www.dan.unb.br/
Texto integral
1A coletânea Antropologia, Saúde e Contextos de Crise, organizada por Rosana Castro, Cíntia Engel e Raysa Martins, reúne textos apresentados e amadurecidos a partir da II Reunião de Antropologia da Saúde, realizada na Universidade de Brasília em 2017. Na Apresentação, Soraya Fleischer explica que o evento foi resultado da trajetória de uma série de seminários realizados desde 2011, envolvendo variados grupos de pesquisa do país. O uso do termo crise, presente no título da obra e do evento, constitui uma espécie de eufemismo estratégico para outra categoria mais flagrante, o golpe, que designou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Contudo, a menção não se limita a um ocultamento. Serve, também, como entrelinha de uma antropologia da saúde que questiona a destruição do SUS: uma antropologia implicada, aplicada e comprometida.
2Na “Introdução”, assinada pelas organizadoras, destaca-se que nenhum dos textos se propõe ao esforço de construir uma genealogia da categoria crise. Isto não significa, porém, que possíveis teorizações estejam ausentes. De outro modo, estas se inscrevem em perguntas específicas: crise por quê e para quem? Tais questionamentos se enfeixam em um período histórico específico, que parte da redemocratização do país, e da construção do SUS, e chega até 2016. Pontua-se que a crise nas políticas públicas de saúde não começou com o golpe, mas permaneceu como potencialidade constante desde a promulgação da Constituição Cidadã. Por outro lado, as autoras são claras quanto à emergência de um contexto de congelamento de investimentos e de terceirização dos serviços, característico do governo Michel Temer. Dito isso, não se furtam a assumir o uso político que fazem da noção de crise, para além de disputas partidárias, no intuito de denunciar o privilégio das políticas neoliberais.
3Sônia Weidner Maluf, em texto que abre os trabalhos, destaca a necessária mudança de tom da antropologia no contexto de declínio de um certo “bem-estar social”, característico de parte das décadas de 2000 e 2010. Trata-se de acrescentar à perspectiva do Estado visto de baixo um esforço etnográfico de mapear os desmontes em curso em múltiplos níveis, assim como as resistências da parte de distintos setores.
4A obra se divide em três partes. A primeira parte, “Etnografias em Contextos de Crise”, contém trabalhos que abordam a problemática da precariedade no funcionamento das políticas públicas de saúde. Natália Helou Fazzioni, tratando de experiências de cuidado relativas a nascimento e envelhecimento no Complexo do Alemão, descreve tensões surgidas na relação entre profissionais biomédicos e moradores usuários do SUS. Márcia Reis Longhi desvela a relação entre cuidado e envelhecimento, sublinhando os efeitos negativos das recentes reformas da previdência e suas inserções em questões de classe, local de moradia, raça, contexto histórico, político e econômico. Mónica Franch propõe um estudo sobre as experiências de brasileiros vivendo com HIV/AIDS na Catalunha, incluindo as vulnerabilidades e agenciamentos na fabricação das redes sociais em situação imigratória. Érica Quinaglia Silva escreve sobre a construção do indivíduo “perigoso” através de um estudo sobre mulheres cumprindo a medida de segurança no Distrito Federal, sentença aplicada a pessoas com transtornos mentais no Brasil.
5Em comum, esses trabalhos denunciam as alianças entre o modelo neoliberal e o modelo biomédico, isto é, entre economia, ciência e política. Nessa articulação, constrói-se um sistema cuja existência depende da distinção entre indivíduos ou grupos mais ou menos reconhecidos que outros, sob o ponto de vista social e ontológico. Através da noção de cuidado precário, Fazzioni designa uma política que estabelece hierarquias entre corpos e vidas, cujas existências dependem de uma trama relacional de abrigo de acolhimento. Em continuidade, Longhi procede uma crítica ao modelo liberal e individualista de autonomia e independência preconizado nos equipamentos públicos destinados ao segmento etário por ela investigado. Franch, por sua vez, situa essa discussão em um marco histórico, chamando a atenção para a crise de 2008 e a aplicação de políticas de austeridade destinadas a afetar saúde, educação e previdência nos países do sul da Europa; sublinhando um vocabulário neoliberal que passa a expressar a redefinição do direito à saúde. Quinaglia sublinha os limites do alcance da Reforma Psiquiátrica, na medida em que, na interseção entre a justiça e a saúde, se estabelece a possibilidade de permanência indeterminada da situação de encarceramento.
6A segunda parte do livro, “Antropologias da e na saúde: debates, propostas e impasses”, contém pesquisas que abordam as extensões e limites da reflexão antropológica sobre o fenômeno saúde/doença, bem como suas capacidades de intervenção. Rosamaria Carneiro evoca sua experiência profissional como docente de ciências sociais em uma faculdade de saúde, sublinhando as incompreensões da inserção do saber antropológico nesse campo, bem como a acusação da parte das próprias ciências sociais sobre sua aplicabilidade. Octavio Bonet, desde o interior do campo antropológico, questiona a limitação da antropologia à produção de conhecimento, pensando em suas consequências no que toca à ética em pesquisa e suas margens de ação. Esther Jean Langdon e Ari Ghiggi Jr. tratam da formação e consolidação de redes interdisciplinares em saúde indígena a partir do movimento da Reforma Sanitária, conferindo ênfase à perspectiva crítica na América Latina. Por fim, María Epele problematiza a articulação entre psicanálise e populações marcadas pela desigualdade e pobreza na grande Buenos Aires, buscando descolonizar os argumentos e modos de argumentar no contexto do Sul Global.
7Nota-se como a antropologia ainda é vista como ciência menor no interior do campo da saúde, marcado pelos imperativos da aplicação e do fisicalismo. As respostas a esse diagnóstico, contudo, são diversas. Carneiro propõe, além de um esforço de autorreflexão, a reivindicação do clássico esforço antropológico de estranhamento, na intenção de desnaturalizar um corpo de saberes que se vê imune a qualquer forma de relativização. Bonet, por sua vez, propõe replantar os próprios pressupostos do saber antropológico. Se a relação entre antropólogo e nativo escapa ao consentimento informado, faz-se necessária outra epistemologia, que implique fazer pesquisa “junto” a seres humanos, mais que “com” eles. Já Langdon e Ghighhi Jr. sugerem uma abordagem relacional através de conceitos como pluralismo biomédico, intermedicalidade e autoatenção. Finalmente, Epele, mais que respostas, enseja dúvidas: como é possível modificar e pressionar de baixo categorias produzidas por especialistas desde cima?
8A terceira parte, “Tecnologias de engajamento: conhecer, fazer, resistir”, tem como pano de fundo as tensões entre o saber biomédico e as múltiplas práticas de conhecimento e modos de existência que surgem em variados campos etnográficos. Sirlene Barbosa Correa Passold tematiza conceitos e práticas tradicionais de saúde e estética entre mulheres quilombolas do Puris – grupo ao qual a própria autora pertence – transmitidos intergeracionalmente, envolvendo múltiplas espécies de plantas. Victor Hugo Barreto, através de trabalho de campo, trata das articulações e contradições entre roteiros eróticos de homens que fazem sexo com homens e os enquadramentos morais, políticos e biomédicos sobre a população com HIV/AIDS, marcados por suas presunções de risco ou vulnerabilidade. Clarice Rios desafia o pressuposto de "déficit biológico" presente no olhar medicalizado e individualista sobre o autismo, sugerindo uma chave relacional para a compreensão desse fenômeno; e descrevendo práticas terapêuticas desenvolvidas nesse mesmo sentido, envolvendo pais e cuidadores. Olivia von der Weid questiona a definição negativa da pessoa cega, definindo-a como expressiva de um regime de normalização que inscreve a deficiência no marco de uma ausência. Para isso, apresenta pesquisa realizada em atendimentos de reabilitação e junto à vida cotidiana desses sujeitos, procurando entrever a corporalidade cega como produtora de sentidos.
9Há aí uma atualização do clássico problema antropológico da alteridade, aplicada ao fenômeno saúde/doença. As formas outras de ser e conceituar a pessoa, se estão longe de serem compreendidas como equívocos primitivos ou simples crenças/doenças, tampouco coincidem apenas com a expressão da diversidade cultural. Trata-se, antes, de teorias e existências a serem levadas a sério, na medida em que fornecem ferramentas de resistência em um jogo desigual de distribuição de legitimidade. Essa problemática se verifica no caso da possível usurpação de saberes da parte da indústria de cosméticos e da necessidade de proteção dos direitos intelectuais de coletivos tradicionais; na compreensão afirmativa das profilaxias próprias aos homens engajados em eventos sexuais como uma espécie de ciência do concreto nativa; ou nos questionamentos suscitados pelos últimos textos: não seriam os traços autistas, mais que sintomas ou manifestações patológicas, formas particulares de envolvimento com a cultura? Ou não existiriam também outros modos de engajamento e composição de mundos, não centrados na visualidade, mas distintivamente significativos e hábeis?
10A opção da coletânea por não encerrar o conceito de crise e de afirmar sua visão política não prejudicou seu conteúdo, abrindo-se, antes, para a profusão de criatividade. No entanto, termina-se com uma dúvida. Pois se a pergunta fundamental era crise para quê, crise para quem?, pergunta-se também: para quê e para quem as recentes alterações da gestão pública de saúde não configuram crise? Por que e por quem estas são definidas nos termos do avanço, mais que do retrocesso, e na afirmação de neutralidade, em oposição ao ideológico? Escrever esta resenha em tempos de ascensão do bolsonarismo, dois anos após o golpe, envolve questionar: como as populações se envolvem em discursos que declinam direitos sociais?
Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Felipe Magaldi, «CASTRO, Rosana; ENGEL, Cíntia e MARTINS, Raysa. (Orgs). Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília: Sobrescrita, 2018. Ebook: http://www.dan.unb.br/», Anuário Antropológico, v.44 n.2 | 2019, 373-378.
Referência eletrónica
Felipe Magaldi, «CASTRO, Rosana; ENGEL, Cíntia e MARTINS, Raysa. (Orgs). Antropologias, saúde e contextos de crise. Brasília: Sobrescrita, 2018. Ebook: http://www.dan.unb.br/», Anuário Antropológico [Online], v.44 n.2 | 2019, posto online no dia 03 dezembro 2019, consultado o 10 novembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/aa/4370; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/aa.4370
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