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Os rolezinhos e as metamorfoses do urbano no Brasil contemporâneo

The rolezinhos and the urban metamorphoses in contemporary Brazil
Louise Scoz Pasteur de Faria e Moisés Kopper
p. 239-266

Resumos

Entredezembrode2013ejaneirode2014, uma série de episódios caracterizados pela “entrada” e celebração orquestrada de jovens populares de periferia em shopping centers deu origem a uma onda de debates sobre o que é o atual “Brasil” e o que está acontecendo com sua desigualdade social e suas pessoas. Os rolezinhos, assim chamados pelos participantes desses eventos, foram rapidamente absorvidos por intelectuais e jornalistas, que se debateram entre duas perspectivas opostas: enquanto alguns viram neles o sinal da democratização do acesso ao consumo e da mobilidade ascendente de milhões de brasileiros ao longo da década de 2000, outros os tomaram como eventos localizados sem conotações políticas ou potencial disruptivo. Neste artigo, tomamos como ponto de partida etnográfico-metodológico os debates públicos entre intelectuais e jornalistas. Captamos os rolezinhos à luz destas tensões e sugerimos duas passagens teóricas para repensar as metamorfoses do urbano no Brasil contemporâneo: a) eles nos convidam a enxergar a cidade a partir das dinâmicas que conectam o digital à materialidade dos lugares; b) eles reafirmam o papel de especialistas no planejamento urbano na sociedade brasileira. Os rolezinhos levam, pois, a um olhar renovado sobre a mobilidade espacial e social, os espaços públicos, sua ocupação e as interações de seus frequentadores, a meio-caminho entre o real e o digital.

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Notas da redacção

Recebido em 21/01/2015 Aprovado em 12/10/2017

Texto integral

  • 1 Disponível em : https://www.facebook.com/events/1398139017123890/ ?fref =ts. Acesso em : 12/12/2014

1Domingo, 23 de março de 2014. Um evento criado na rede social Facebook anunciava o rolezinho no Shopping Praia de Belas.1 Localizado entre a região central e sul da cidade de Porto Alegre, é ponto de convergência de veículos e transeuntes que circulam na pista da Usina do Gasômetro, situada ao longo de parte do Rio Guaíba e do Parque Marinha do Brasil, uma área de pouco mais de 70 hectares ao lado do empreendimento. Essa é uma região movimentada na cidade, que evidencia seus contrastes socioeconômicos. Trata-se de um ponto de passagem para a região sul de Porto Alegre, caracterizada pelo contraste entre condomínios fechados de alto padrão, condomínios de camadas médias baixas e bairros com moradias precárias. A página do evento indicava em torno de 1,2 mil presenças confirmadas desde 16 de março, quando a proposta havia sido lançada.

  • 2 Termo pelo qual se passou a referir às pessoas que frequentam os rolés.

2A concentração nas dependências do shopping iniciou a partir das 13 horas, sem hora para encerrar. Ao contrário da imagem massiva que o número de presenças confirmadas suscitava, pequenos grupos chegavam continuamente ao longo do dia e circulavam dentro e fora do empreendimento em um exercício de ver e ser visto, tanto que, por certos momentos, parecia haver mais seguranças do que rolezeiros2 curtindo no shopping.

3Uma cena em particular chamou nossa atenção. Um grupo de cinco garotas se reunia na área de convivência do pavimento térreo, circundada por escadas rolantes vistas até do último andar. Com câmeras fotográficas e celulares, conversavam sobre a fotografia que seria tirada naquele momento. Entre risadas e brincadeiras, logo partiram para debaixo da escada rolante, cuja face é espelhada, tal como as laterais, e começaram a se arrumar. Poses feitas, a imagem foi capturada com o claro intuito de ser disseminada por meio de plataformas de redes sociais.

4Não somente as garotas e o shopping estavam amalgamados na composição; elas não registravam apenas a sua imagem, mas o seu reflexo sobre as estruturas daquele espaço. A imagem não servia apenas para que vissem a si próprias e para que os outros as vissem; era o registro de que aquelas paredes e espelhos também as viram. Cenas semelhantes pautaram diferentes incursões de campo. Pequenos grupos que se cruzaram aqui e ali se reorganizaram em aglomerações maiores, trocaram palavras e telefones, circularam, se desfizeram e se reagruparam, num circuito retroalimentado que transcendia a arquitetura planejada dos shopping centers.

5Ao longo de 2014, o debate a respeito dos chamados rolezinhos pautou muito da produção midiática sobre o Brasil contemporâneo. Essa cena etnográfica em particular parece um bom ponto de partida para situar nossa proposta reflexiva, já que tanto exemplifica como materializa as controvérsias em torno da disputa conceitual e semântica que se instaurou entre intelectuais, jornalistas e comentaristas a respeito da temática: qual é o sentido de falar sobre os rolezinhos dentro de um panorama de novos aportes teóricos para discutir classe, consumo e desigualdade? Ou então eles evidenciavam algo capaz de transcender essas questões? Nas páginas que seguem, inicio uma reflexão sobre as transformações do urbano na sociedade brasileira nos últimos quinze anos, das quais os rolezinhos são parte essencial.

  • 3 O funk ostentação é um estilo musical que, diferentemente do funk carioca, não fala sobre crime ou (...)

6No início de dezembro de 2013, milhares de jovens atenderam ao convite feito através da rede social Facebook para se reunir e ouvir funk ostentação3 no estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, em São Paulo. O que num primeiro momento parecia uma atividade rotineira ganhou ares inesperados graças à sua rápida apropriação pela grande mídia. Eventos semelhantes marcados por tensas interações em shopping centers irromperam em diferentes partes do país. O conjunto desses episódios caracterizados pela “entrada” e celebração organizada de jovens populares de periferia nesses espaços passou a ser reconhecido, pela grande mídia, como “rolezinhos”, uma derivação de “rolê”, associada a dar uma volta e se divertir.

7A temática do rolezinho adquiriu surpreendente ressonância, provocando efeitos em discussões que envolveram setores especializados e leigos de diferentes partes do espectro político e intelectual. A maneira como reverberou muito se assemelha ao jogo de espelhos daquelas cinco garotas com quem abrimos o texto, o que coloca a questão: de que modo as imagens produzidas por esses campos colidem, cooperam ou tensionam problemáticas político-econômicas, tecnológicas e teóricas do Brasil contemporâneo? Sobre o que estamos realmente falando quando falamos de rolezinho? Argumentamos aqui que a potência analítica do fenômeno está em sua capacidade de questionar nossa própria habilidade de enxergar e refletir.

8Os debates que sobrevieram aos rolezinhos ativeram-se aos efeitos da inserção dos jovens em redes de consumo, construindo dois polos de tensão. Para um setor de intelectuais brasileiros, os rolezinhos seriam abrangidos por estudos tradicionais que davam conta das formas de ocupação de espaços de consumo nas periferias das grandes cidades por populações afastadas dos centros urbanos. Do outro lado do espectro intelectual, a ocupação de shopping centers sinalizava a resistência política à exclusão crônica que assolava essas populações tradicionalmente à margem do consumo e, por extensão, da cidadania.

9A ótica pela qual sugerimos perceber o fenômeno resiste a quaisquer separações radicais entre os eventos e suas repercussões entre intelectuais e figuras públicas. Do ponto de vista da antropologia urbana, é nessa interface que os rolezinhos adquirem inteligibilidade: eles nos fazem repensar a cidade a partir das dinâmicas que conectam o digital à materialidade dos lugares, reafirmando o papel dos especialistas no planejamento das paisagens urbanas. Não basta demarcar novidades e continuidades. É preciso aproveitá-las para renovar os instrumentais que nos permitem definir o novo e o velho em relação com as “realidades” que procuramos compreender.

10Os shopping centers foram tipicamente considerados símbolos da reestruturação urbana das metrópoles brasileiras durante as décadas de 1970 e 1980, da abertura para o consumo através da expansão de mercados internos e da ascensão das classes médias urbanas. Desde os primeiros estudos sobre os processos de ocupação de shopping centers, diversos esforços foram empreendidos na tentativa de compreendê‑los a partir das trajetórias múltiplas de seus frequentadores e das dinâmicas que sua circulação engendrava (Frugoli Jr., 2008). Tais predileções metodológicas estavam afinadas com a apropriação das novas teorias de classe oriundas do contexto sociológico francês (Bourdieu, 2008) e a proposição de novos modelos analíticos então emergentes, como no trabalho de Gilberto Velho (1973, 1987, 1994) e de José Cantor Magnani (1984, 1996) na Universidade de São Paulo (USP), com a subsequente utilização de conceitos como de “estilos de vida”, “manchas”, “pedaços”.

11A própria cidade passou a ser pensada como consequência de fluxos imobiliários, subjetivos e expressivos que têm por efeito acentuar, por exemplo, a edificação de muros e empreendimentos privados (Caldeira, 2000) e o recrudescimento da vigilância, higienização, gentrificação e normalização dos shopping centers (Leite, 2001). Inseria-se nesse contexto o rápido processo de deterioração dos usos de espaços então tidos como inequivocamente públicos, o que levou parte das classes médias e altas a deslocar suas práticas de sociabilidade para shopping centers recém-construídos nos anos 1980.

12Como ficou claro rapidamente, esses locais não eram isentos de processos de popularização, convertendo-se em palcos de dramatização de questões cruciais, como nos lembra Frugoli Jr. (2008) a respeito de manifestações de grupos homossexuais e negros na década de 2000, por exemplo. Ele nos diz que, ao incorporar “um público marcado por maior ou menor grau de diversidade, uma dimensão significativa que esses locais tornam mais visível, sobretudo quanto aos grupos juvenis”, constitui “espaços comunicacionais em que se definem e redefinem simbolicamente várias diferenças socioculturais”, “espaços onde certos modos ou estilos de se praticar e representar a diversidade se tornam mais visíveis, merecendo abordagens que possam aprofundar os significados em jogo” (Frugoli Jr., 2008:234‑240).

13Décadas depois, shopping centers seguem sendo um espaço de convergência para sociabilidades, consumo e práticas de lazer de diferentes grupos sociais. Não há dúvidas de que se converteram em dispositivos agregadores de processos culturais dinâmicos que transcendem o escopo de seus gestores. A irrupção dos rolezinhos parece ter deflagrado a possibilidade de repensar os shopping centers também como espaços de contestação em que disputas sobre o significado do político e do público ganham vida.

14Em seu conjunto, essas transformações não representam apenas o acesso à cidade para uma parte da população até então alijada de certos espaços, mas constituem o eixo a partir do qual o urbano passou a ser pensado e sobre o qual novas formas de imaginar o político são desenhadas. Assim, propomos um olhar renovado sobre o significado dos espaços públicos como articuladores de práticas de sociabilidade que deslocam as fronteiras convencionais entre “virtualidade” e “realidade” (Miller, 2012) e suas implicações sobre o urbano e a constituição de subjetividades emergentes.

15Nosso esforço na busca pela restituição empírica e analítica dos rolezinhos está em atentar para os modos como estes se converteram em um “problema”, um artigo valioso que merece atenção de diferentes modalidades especializadas e acadêmicas nas disputas por seu legado político, econômico e social contra um pano de fundo de crescente mobilidade social ao longo da década de 2000 e início da década de 2010.

  • 4 A PNAD classifica cinco grandes categorias de “padrão de vida” : alta classe média, média classe mé (...)

16Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), essa tendência pôde ser verificada entre os períodos de 2002 a 2008 e 2008 a 2012 em todos os estratos sociais.4 Entre 2002 e 2008, houve um decréscimo no número de miseráveis de 36,2% e, entre 2008 e 2012, esse percentual continuou a aumentar, representando uma diminuição de mais 33,6% entre miseráveis e de 19,2% na categoria de massa trabalhadora. Numericamente, ambas essas categorias migraram para categorias de camadas médias, que, por sua vez, migraram verticalmente. Entre 2002-2008 e 2008-2012, o estrato “alta classe média” experimentou um aumento percentual de 25,5% para 32,9%; “média classe média”, de 35,4% para 36,8%; e, por fim, na “baixa classe média”, a diferença é de 53,3% para 35,3%, evidenciando maior dinamismo entre estratos sociais.

17Para tanto, propomos uma abordagem etnográfica de materiais extraídos de veículos de comunicação de circulação nacional, entendendo textos jornalísticos como documentos que possuem um modo de produção e uma política de veiculação e circulação particulares e que provocam efeitos concretos na maneira como uma temática determinada adquire status de debate público. Compreendemos artigos midiáticos como artefatos, uma entidade em um duplo registro que é tanto produto como agente de uma forma de conhecimento e prática que expressa um projeto moldado à medida que circula na heterogênea rede da opinião pública.

18Essa é uma perspectiva teórico-metodológica inspirada na Etnografia de Documentos (Gupta, 2012; Hull, 2012; Muzzopappa & Villata, 2011; Navaro-Yashin, 2007), estratégia metodológica posta em movimento por pesquisadores interessados em debates sobre Estado, burocracias e construção de expertise. Esses pesquisadores tomam como objeto de reflexão práticas documentais e artefatos documentais produzidos em diferentes instâncias de burocracias estatais e circuitos de especialistas. Como bem colocam Ferreira e Nadai, “tais artefatos demonstram, por vezes de forma incerta e inesperada, de produzir sujeitos, afetos, conflitos e modos de sociabilidade institucional” (2015:7).

19A coleta de textos jornalísticos se deu a partir de um critério de visibilidade e número de acessos entre janeiro e dezembro de 2014. Fazem parte deste artigo matérias que adquiriram peso na conformação do debate público a respeito do rolezinho, verificado através de metarreferências contidas nos próprios textos, no número de acessos e nos compartilhamentos em sites de redes sociais. Esse levantamento quantitativo foi realizado na plataforma Google Trends, que mapeia citações de termos‑chave e número de buscas. Com isso, compomos uma linha do tempo de construção pública desse debate através dos media e fazemos uso de plataformas digitais não só como objeto de reflexão, mas também como estratégia de coleta de dados.

20A questão que passou a nortear nossa reflexão é: o que essas difusas apropriações da categoria rolezinho podem indicar a respeito da configuração intelectual e política dessa população-alvo e que jogos de poder estão implicados nas noções que a acompanham no Brasil contemporâneo? Este artigo estrutura-se em três seções que contextualizam os argumentos levantados até aqui. Primeiramente nos dedicamos a descrever eventos fundamentais que levaram à produção da categoria rolezinho como pauta de uma agenda política de debates. Em seguida, destrinchamos as disputas empreendidas por diferentes intelectuais e personalidades públicas, incluindo-se a grande mídia, na busca pelo monopólio de enunciação do legado desses eventos, escrutinando em torno de fatores que expliquem a polarização do embate. Finalmente, apresentamos limites e possibilidades interpretativas que permitam compreender as complexidades tecnológicas na origem de tais eventos. Encerramos com algumas conclusões sobre a produção dos próprios sujeitos, sugerindo caminhos para futuros debates.

Vamos dar um rolé?

21Os rolezinhos foram tratados pela mídia como eventos disruptivos que eclodiram em 7 de dezembro de 2013 no shopping center Metrô Itaquera, localizado na zona leste da cidade de São Paulo, de que participaram cerca de seis mil jovens. A administração do estabelecimento acionou a polícia, que, com a equipe de segurança privada, repreendeu os rolezeiros, levando o shopping a fechar uma hora e meia antes do expediente. O encontro havia sido organizado através da plataforma de rede social Facebook e definido por seus líderes como um “grito por lazer”. O que poderia, ao primeiro olhar, parecer um desejo por circular em espaços e zonas urbanas que não eram projetados nem sequer imaginados para eles logo se revelou uma questão bem mais próxima de casa.

  • 5 Iniciada em 2 de dezembro de 2009, a Operação Delegada foi realizada a partir de um convênio entre (...)

22O processo que culminou na ocupação do shopping Metrô Itaquera iniciou em abril daquele mesmo ano, quando a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a primeira votação do Projeto de Lei 2/2013, que proibia a realização de bailes funk. A proposta era de dois ex-comandantes da Polícia Militar – Álvaro Camilo (PSD/SP), comandante da corporação até o final de 2011, e Conte Lopes (PTB/SP), comandante da Rota no início da década de 1980 –, defensores do uso da força da polícia militar da Operação Delegada5 no combate a bailes funk e ao consumo de álcool em lojas de conveniência de postos de gasolina. Paralelamente, em maio, foi aprovada e regulamentada a Lei 15.777/13, que dispunha sobre a emissão de ruídos sonoros provenientes de equipamentos de som instalados em veículos automotores estacionados em vias públicas. A medida visava constranger a realização de festas improvisadas em pontos da periferia, os chamados “pancadões”.

23Em 6 de dezembro do mesmo ano, o projeto de lei foi aprovado em segunda votação e passou, então, para o prefeito em vigor, Fernando Haddad (PT). Caso aprovado, seria regulamentado dentro de sessenta dias. Os primeiros atos de resposta foram organizados por DJs, produtores e empresários ligados à cena funk. Antes de Metrô Itaquera, o shopping Aricanduva, localizado na mesma região da cidade, foi ponto de encontro de rolezeiros e respondeu com apreensão ao encontro.

24O final do ano seria marcado por rolezinhos que se seguiram, até o ponto em que se tornaram percebidos como uma ameaça constante. Uma semana depois do rolé no Metrô Itaquera, 23 jovens foram levados à delegacia em um evento no shopping Internacional de Guarulhos, no qual entraram entoando refrães de funk ostentação. Em 21 de dezembro, a administração do shopping Campo Limpo chamou a força policial para coibir um possível rolé. Mesmo sem sinais evidentes, policiais permaneceram no local e entraram nas dependências do shopping com armas de borracha e bombas de gás. No dia seguinte, manifestantes foram revistados assim que chegaram ao local e um forte esquema policial foi montado.

  • 6 Esses foram os casos que mais receberam atenção da mídia tradicional, aos quais buscamos limitar o (...)

25Na primeira semana de janeiro de 2014, o shopping de luxo JK Iguatemi conseguiu uma liminar que proibiu manifestações dentro de sua estrutura, com previsão de multa a quem fosse identificado como rolezeiro. Quatro outros estabelecimentos conseguiram liminar semelhante: em São Paulo, além de JK Iguatemi, Itaquera e Campo Limpo; e, em São José dos Campos, o shopping Center Vale. Nessa mesma semana, a polícia militar fez uso de bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral contra um grupo de aproximadamente mil pessoas no shopping Itaquera. Em todos os casos, a força de segurança pública agiu com empresas de segurança privada, revistando pessoas identificadas visualmente como possíveis rolezeiros nas principais entradas dos estabelecimentos.6

26Nesse ponto, é necessário explicitar duas questões. A primeira diz respeito à paisagem política que encobre a emergência dos rolezinhos e sinaliza um cenário onde o funk se torna epítome de ações políticas dirigidas às periferias, sugerindo que o lazer nessas regiões não apenas é indesejado, mas perigoso. A prefeitura de São Paulo defendeu as medidas adotadas, especialmente com relação à regulamentação de ruídos em vias públicas, alegadamente, como um mecanismo de valorização do funk.7

27O objetivo seria despir uma imagem associada à criminalidade, profissionalizando pessoas ligadas à música e tornando-a símbolo de uma cultura jovem de periferia. Isso deu corpo ao projeto Território Funk, concebido pelas secretarias de Cultura e Promoção da Igualdade Racial, que promoveram vários eventos ao longo de 2013. Pronunciamentos oficiais da administração municipal afirmaram o comprometimento com um “conjunto de movimentos do funk [para auxiliar] eventos na periferia, colaborando na obtenção de espaço adequado, estrutura e apoio na segurança dos frequentadores e artistas”.8

28Em 8 de janeiro de 2014, o Projeto de Lei 2/2013 foi vetado integralmente. As razões de veto publicadas no Diário Oficial alegavam que os objetivos do projeto já eram atendidos pela legislação em vigor e que a fiscalização já se encontrava atendida pela mesma lei de regulação de ruídos sonoros aprovada no ano anterior. Na ocasião, Fernando Haddad declarou que o “funk é uma expressão legítima da cultura urbana jovem, não se conformando com o interesse público sua proibição de maneira indiscriminada nos logradouros públicos e espaços abertos”.9

29O segundo aspecto digno de nota refere-se às díspares motivações espontâneas que foram encapsuladas dentro da categoria rolezinho, assim como sua intricada relação com narrativas veiculadas em diferentes mídias. Parece claro que a primeira manifestação a ser reconhecida como tal, ao contrário de incitada por questões puramente ligadas ao desejo pelo consumo e por diversão livre, mais parece atrelada a uma situação política: o combate ao funk como mecanismo de acesso às periferias.

30A repercussão midiática foi notável e atingiu seu pico entre 6 de dezembro e 15 de janeiro de 2014.10 Matérias jornalísticas passaram a colocar em primeiro plano a reação do shopping Metrô Itaquera e uma possível relação com as manifestações ligadas ao transporte público ocorridas em junho11 e contrárias à Copa do Mundo de futebol de 2014. “Em vez de manifestação, é encontro. No lugar da passeata, tem ‘rolezinho’. A mobilização de jovens da periferia de São Paulo em shoppings foi uma forma encontrada para chamar a atenção sobre a sua realidade”, diante da incompreensão de empresários e políticos. “Na tevê, as cenas eram de correria. No pé das reportagens, a observação da administração do shopping passava batido: não houve arrastão e os furtos eram casos isolados”.12

  • 13 Disponível em : http://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/49221-rolezinho-como-as-redes-sociais-impu (...)

31A aposta era no alastramento dos rolezinhos. As mídias sociais apareceram como elemento que conectaria essas manifestações e marcaria sua novidade, “possível graças ao poder de viralização e de interação da internet, mais especificamente das redes sociais. Foi basicamente através de eventos criados no Facebook que milhares de pessoas passaram a se reunir em shoppings de várias cidades do país”.13 A profusão de matérias jornalísticas de abordagem política parecia ter relação com o endurecimento da segurança por parte dos shoppings para além de questões discriminatórias de base.

32A narrativa dos rolezeiros passou a ser cada vez mais caracterizada por retórica política. “Rolezinho é o flashmob de pobre”, dizia uma citação retirada de depoimento. “Nas redes sociais, jovens, que geralmente são negros, funkeiros e ‘favelados’, combinam um encontro dentro de algum shopping da cidade e, estando lá, eles passeiam em grupos cantando suas músicas preferidas. Quando a classe média branca vê aquele mar de negros ‘invadindo’ o shopping, já pensam que são assaltantes, estupradores, ladrões”.14

33Isso não passou despercebido pela mídia. A partir de janeiro de 2014, ela passou a anunciar uma nova modalidade de rolezinho: o rolezinho engajado, onde “até entidades de defesa dos direitos dos negros e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto agora querem convocar seus próprios rolezinhos” com chamados próprios, como o “Rolezão contra o Apartheid” nos shoppings Jardim Sul e Campo Limpo, em São Paulo. “No próximo sábado [18 de janeiro de 2014], será a vez do JK Iguatemi receber o ‘rolé contra o racismo’.”15

34Paralelamenteàabordagempolítica, outrostextoscolocaramemrelevoquestões relativas ao prestígio e à fama de seus participantes. Os jovens coordenadores das páginas convocatórias passaram a ser retratados como ídolos para seus fãs que, na esperança de um contato face a face, passaram a participar dos rolezinhos e que, ávidos por esse contato, levariam para eles presentes caros. Um dos ídolos era Juan Carlos Silvestre, de 16 anos, conhecido na internet como Don Juan. Uma matéria de 15 de janeiro dizia que, “no primeiro dia de rolezinho, em 7 de dezembro […], centenas de garotas queriam encontrá-lo. De lá, Juan saiu com roupas de marca, ursinhos de pelúcia, cartas, perfumes e uma camiseta oficial do Corinthians”.16

35O rolezinho deixou de ser um grito por lazer para se tornar um grito contra uma discriminação estrutural que anunciava que as coisas haviam mudado. Intelectuais tiveram papel preponderante nesse processo. O modo como situaram a questão através de campos disciplinares e suas disputas de poder passa, agora, a ser o foco do presente texto.

Dos rolezinhos aos intelectuais, ou de como a sociedade já não é a mesma

36Ao tomar a repercussão narrativa do rolezinho como ponto de partida, nosso interesse se dirige às bifurcações interpretativas e políticas que sua visibilidade na grande mídia deflagrou para, assim, compreender os modos como certas categorias de sujeito são definidas como pontos centrais de ancoragem de debates mais amplos sobre o Brasil. Argumentamos que muitas das insuficiências explicativas sobre seus efeitos decorrem da estruturação do campo de debates por categorias morais prévias. Estas colocaram em evidência um quadro mais profundo de tensões articuladas em torno de uma noção de “classe”. O elemento disruptivo dessas justificações parece ser a associação, por parte da opinião pública, entre os participantes desses eventos e a existência de uma “nova classe média”, tornando-se simultaneamente problema e artigo valioso que mereceu o engajamento de diferentes modalidades de intelectuais nas disputas pelo seu próprio legado político, econômico e social.

37Os debates construíram dois polos de tensão: de um lado, a ocupação de shopping centers como sinal de resistência política à exclusão crônica que assolaria essas populações, tradicionalmente à margem do consumo e por extensão, supõe-se, da cidadania. De outro, o processo de reificação de marcas e objetos subjacente ao ato de consumo. Não deixa de ser interessante que, se no primeiro caso é a suposta “nova classe média” o termo utilizado para referir-se aos “rolezeiros”, no segundo eles são aglutinados sob a alcunha de “pobres”.

38A frente discursiva que se franqueou para falar da recente mobilidade social brasileira sobre as bases dos programas sociais de redistribuição de renda e a queda na desigualdade de renda do país concentrou-se na exploração de seus efeitos em termos de “inclusão” econômica. Os “novos pobres”, transfigurados em classe média por meio de dispositivos classificatórios, tornaram-se objeto de atenção privilegiada das grandes corporações varejistas interessadas em redirecionar o foco de suas estratégias de venda para esse segmento em ascensão no Brasil. Contaram, para tanto, com a ação de institutos de pesquisa de mercado que, desde o início da década de 2000, ingressaram num movimento de reformulação de seus instrumentos de comunicação para a “lógica de consumo” da chamada “classe C” (Kopper, 2015, 2016).

39Renato Meirelles, presidente fundador do instituto Data Popular, foi o primeiro a propor uma conexão de sentido entre os rolezeiros e a nova classe média brasileira. Definido pela grande mídia como um especialista nessa população, Meirelles se consolidou rapidamente como referência quando o que está em jogo é traçar tendências, explicar comportamentos e prognosticar reações da “classe C”. Certamente não é de menor importância para isso o fato de haver convertido, no início da década de 2000, sua agência de marketing em um instituto de pesquisa.

40Em seus termos, “a gente não tem pretensão de dizer para onde o Brasil vai ou apontar critérios. O que a gente tenta fazer é montar uma equipe que junte os diversos olhares num primeiro momento […]. Tem antropólogos, sociólogos, temos economistas na nossa equipe fixa, e todo mundo fica se matando, debatendo a análise das pesquisas”. E, mais importante: “a gente passa um tempo convivendo, conversando com essas pessoas, porque elas têm que ser as próprias intérpretes disso”.17

  • 18 Dissonância cognitiva é uma categoria psicológica aplicada ao marketing, usualmente empregada para (...)
  • 19 Multiculturalismo refere-se ao reconhecimento, por meio de políticas de governo, das diversidades e (...)

41Os institutos privados de pesquisa foram os primeiros a apostar numa possível associação entre mobilidade social, redução da desigualdade e ascensão de uma nova classe média a partir de um leque retórico que enfatizava a existência de dissonâncias cognitivas18 entre o mundo corporativo e o universo do consumidor popular. O sujeito só existiria como cidadão livre para escolher na medida em que se torna um consumidor cujas lógicas podem ser escrutinadas pelo saber econômico que cria esse próprio sujeito – uma visão multicultural19 das classes sociais e dos grupos de interesse na medida em que pretende valorizar certas especificidades vistas agora como culturais ou determinantes de um “povo”.

  • 20 Disponível em : http://www.sae.gov.br/site/?p=11401. Acesso em : 12/12/2014.

42A valorização destas particularidades implicaria a produção de essencialismos, dissonâncias cognitivas e fechamentos culturais, já que “uma das premissas do mercado é a de que quem subestima a inteligência do consumidor sai perdendo […]. As referências são completamente distintas […]. Um exemplo é a estética feminina […]. Na classe C as formas curvilíneas prevalecem”. Consequentemente, as escolhas de consumo são distintas: “cores fortes também são as preferidas da Nova Classe Média, pois remetem a valores de brasilidade”.20

43Desse modo, a “nova classe média” rapidamente assume atributos legitimados por meio da realização de pesquisas instrumentadas pelo aparato científico – populações cujas vidas devem ser mais bem compreendidas em função de seu valor estratégico nesse mercado de consultorias. Um de seus efeitos seria a própria possibilidade de repensar o Brasil, desde suas estratificações e desigualdades em rearranjo. Chamada por ele de “Geração C”, nasceriam “conectados, estudaram mais que seus pais, trabalham, acreditam ser protagonistas de sua própria história e estão mais preocupados com o futuro do que são gratos pela melhoria do passado” e obrigariam “a velha guarda a rever os seus conceitos”.21

44Para voltar às disputas taxonômicas em torno dos rolezinhos não espanta que, para Meirelles, haja uma extensão discursiva facilmente assimilável entre os jovens da nova classe média e os participantes dessas manifestações. Trata-se de um modelo de sujeito psicologizante cujas reações seriam previsíveis na medida em que não passariam de variantes de reiteradas tentativas de “ver-se parte” de alguma totalidade mais ampla que lhes escapa: a sociedade brasileira, a sociedade de consumo, o capitalismo, a classe média.

45O consumo teria uma função para além de “tangibilizar” a “melhora de qualidade de vida”. Também serviria para reduzir o “preconceito a que esses jovens são, cotidianamente, expostos. Eles acreditam que se vestindo melhor serão bem atendidos nas lojas, terão mais chances em uma entrevista de emprego ou sofrerão menos batidas da polícia”.

46Tal estratégia não é fortuita, mas positiva os sujeitos envolvidos e lhes atribui estatuto de consumidores cujos anseios se convertem em estratégia de mercado. Isso permite a Meirelles escapar do debate moral em torno da pertinência e do legado de rolezinhos e rolezeiros, isto é, como integrados alienados ou resistentes ilustrados, para enxergá-los como configurações do mercado onde essas práticas se desenrolam. Para Meirelles, “barrar este público é dizer para essa importante parcela de consumidores – que têm poder de consumo de R$ 130 bilhões, mais que a soma das classes alta e baixa –, que eles não são bem-vindos”. Caberia à indústria de shopping centers “enxergar esse fenômeno como uma oportunidade, tratando os jovens de periferia com a mesma generosidade que recebem os calouros de administração da USP”.

47Isso possui duas implicações. A primeira é a possibilidade de pensá-los como aglutinadores de políticas baseadas na noção de “inclusão social”, o que não passa necessariamente por um convencimento desses sujeitos como “integrados” à sociedade de consumo brasileira ou a determinado projeto de classe média tradicional, mas, antes, pela configuração de sujeitos hiper-reais que adquirem materialidade nas agências discursivas colocadas em circulação por experts de mercado e de governo.

  • 22 Disponível em : http://jornalggn.com.br/noticia/rolezinho-nao-e-um-movimento-politico-diz-renato-me (...)

48Os jovens que vão para os rolezinhos passam a ser pensados por Meirelles como “filhos da nova classe média brasileira”, que passam “o mês inteiro consumindo dentro do shopping, e depois ele vai celebrar dentro do próprio shopping que ele conhece”. Seriam o “target primário de qualquer shopping”; nesse sentido, “a saída pros rolezinhos é que o shopping enxergue esse fenômeno como oportunidade de vender pra esse público”.22

  • 23 É curioso que a proliferação de análises acerca deste fenômeno apareçam, em parte, como o resultado (...)

49Os episódios condensados sob o nome de rolezinho não colocam apenas o interessante problema da emergência desses sujeitos como subjetividades que merecem ser descobertas e compreendidas, o que nos conduz a uma reflexão acerca do que os torna um artigo valioso nas disputas pelo legado desses fenômenos. Eles nos levam, também, às disputas políticas e morais de intelectuais engajados em avaliar suas repercussões.23

50A sociologia, em particular, constituiu-se historicamente sobre as bases do conceito de classe, e é sobre autores brasileiros contemporâneos que está depositado o esforço teórico de reavivar o conceito para a explicação da realidade do país. Encontramos duas expressões paradigmáticas desse debate: a atuação de Jessé Souza (2009, 2010) como articulador de uma crítica ao tema e de Rudá Ricci (2010), autor da expressão “lulismo”, com a qual designa o período recente da história brasileira. A escolha não é arbitrária. Os “rolezinhos” representaram ocasião propícia para a retomada de suas principais proposições político-teóricas.

  • 24 A apropriação de Souza da obra de Bourdieu parece se realizar a partir da análise da distinção no c (...)
  • 25 Sobre as apropriações recentes dessa literatura, ver Botelho e Schwarcz (2009), Ricupero (2008), Ro (...)

51Não seria possível entender os caminhos delineados por cada sociólogo sem compreensão prévia dos engajamentos teóricos e políticos na origem de suas formações acadêmicas. Jessé Souza é, provavelmente, o autor brasileiro mais bem-sucedido no processo de importação das teorias de Pierre Bourdieu (1998, 2001, 2005, 2006) para a compreensão da sociedade brasileira.24 Boa parte de seus investimentos se dirigem a contestar autores que se centraram na problemática do atraso desenvolvimentista, tomando como parâmetros de comparação os paradigmas estruturais, econômicos e sociais que se desenvolveram nos grandes centros.25 Em A ralé brasileira, Souza (2009) inicia sua tentativa de traçar o panorama etnográfico de uma classe de excluídos ou desclassificados que representaria um terço da população do país. No ano seguinte, em Os batalhadores brasileiros (Souza, 2010), dá sequência às reflexões ao sustentar que a nova classe média brasileira é, na verdade, uma nova classe trabalhadora, visto que lhe faltaria, do ponto de vista dos capitais que caracterizariam a classe média como estrato, o principal deles: o acesso privilegiado ao capital cultural, técnico ou intelectual, essencial para a sua reprodução e legitimação tanto no mercado quanto no Estado.

52Suas críticas são dirigidas a dois dos economistas mais proeminentes no debate em torno do estatuto teórico epistemológico da nova classe média: Marcelo Neri (2008) e Marcio Pochmann (2012). A principal delas talvez seja a própria ideia de que o conceito só se torna inteligível a partir de um rompimento epistemológico do pesquisador com a realidade. Seu efeito consiste em politizar as visões que pretende combater, sugerindo que estas satisfazem a interesses difusos e nem sempre nominados do “grande capital” (Souza, 2013:1-2).

  • 26 O argumento não é essencialmente novo (Xavier Sobrinho, 2011). O tom acalorado dos debates não perm (...)

53Poderíamos dizer que isso tem por efeito uma sociologia crítica que procura monopolizar o debate sobre classes sociais. Em última instância, a crítica de Jessé e tantos outros sociólogos que entraram nesse debate26 ao economicismo tem o fundamento de uma deslegitimação interpretativa dos economistas, e não o questionamento radical de seus critérios de corte. Do Homo economicus ao Homo hierarchicus há uma diferença de grau, não de natureza epistemológica.

54Tomando a noção de classe como fator de corte e razão explicativa universal, é possível propor um entendimento dos rolezinhos em que o fenômeno tornou-se rótulo estratégico para a narração de uma outra agenda de investigação que se situa na fronteira entre o que chama de “novos desclassificados sociais” ou “ralé’ e a “nova classe trabalhadora precária”, que, para Jessé Souza (2013), seria mal rotulada de “nova classe média”.

55A fluidez entre categorias é o que permitiria a referência às classes populares em um sentido geral, compondo uma paisagem que reflete o “apartheid brasileiro”, que separa o país em “dois planetas distintos, o espaço de sociabilidade dos brasileiros ‘europeizados’, da classe média verdadeira e os brasileiros percebidos como ‘bárbaros’, das classes populares”. Ele continua e diz que, “desde que a barbárie fique restrita ao mundo das classes populares, ela não é um problema real. Cria regras não escritas e, por causa disso mesmo, muito eficientes […]. É esse apartheid que criou o tipo de polícia e a cultura da violência que temos”.27 Sob o argumento de que sua sociologia é mais “científica”, Jessé Souza encobre o próprio problema da reflexividade representacional e despolitiza o debate ao propor modelos valorativos que orientariam os fatores de corte entre classes. Permanecem operando certos modelos de subjetividade imaginados como ideais na expectativa de que haja uma coextensividade entre o mundo das ideias e a realidade experimentada pelos sujeitos apontados por essas pesquisas. A questão é, em última instância, como o próprio Jessé anteviu, de ordem moral: não uma moral dos agentes, mas a dos próprios pesquisadores.

56Por sua vez, Rudá Ricci (2010) sugere que uma abordagem possível do fenômeno pode ser extraída de seu corpus analítico prévio. Responsável pela cunhagem do termo “lulismo” para designar a atual conjuntura de “estatalização” dos movimentos sociais e uma espécie de “desenvolvimentismo social”, Ricci nomeia o problema da “inclusão social” através da encapsulação da cidadania pelo acesso ao emprego formal e produtivo e às redes de consumo tipificados pelos programas de transferência de renda.

57Esse novo “milagre econômico” faria com que “milhões de brasileiros rompam com histórias familiares de exclusão do consumo de massas. […] São brasileiros pragmáticos como o lulismo. Não são afetos a teorias ou ideologias. São descrentes da política. Seus vínculos sociais são comunitários, muitas vezes familiares” (Ricci, 2010:11).

58O que se observa é a atribuição de certos modelos de subjetividade e agência a eventos difusamente encadeados. Como destacou em entrevista a respeito dos rolezinhos, Ricci (2014) nos diz que eles “nacen de dos sentimientos que se cruzan. El primer, fruto de la inclusión por el consumo provocado por el lulismo. No hubo inclusión social por la lucha por los derechos (motivada por movilizaciones y protestas sociales que, victoriosos, generarían identidad social y política) o por la política (fruto del compromiso sindical o partidario)”.28 O que explicaria o fenômeno pode ser resumido à disseminação da ideia de que o prestígio social se vincula a bens adquiridos e o ressentimento de que estariam abandonados por governantes e discriminados pelas classes médias tradicionais. Ricci afirma que esse seria o motivo pelo qual

andan en multitud (más de 1.000 jóvenes en los rolezinhos), porque saben que en pequeños grupos, sufrirán discriminación. En grupos más grandes, toman el espacio que no los acoge con mucho entusiasmo. A partir de ahí, se trata de una acción infantil, ni siquiera adolescente […]. No hay señal de enfrentamiento de clase. […] Pero ahí, entran los políticos y la Policía Militar para politizar esta situación. Los políticos se preocupan con la reacción de la clase media, que aún creen que son formadores de opinión electoral.29

59Ambas as sociologias de Jessé Souza e de Rudá Ricci parecem não ver problema em atribuir motivações uniformes e conscientes a esses fluxos de pessoas. Seu efeito imediato consiste em subsumir grupos altamente diversos na noção de classes populares, depreciando suas experiências de vida através de noções como, no caso de Jessé, “ralé” ou “batalhadores”. Essas afirmações soam particularmente perniciosas a qualquer antropólogo brasileiro formado numa tradição de comprometimento moral, mesmo que indireto, com essas mesmas populações.

60Alba Zaluar e Rosana Pinheiro-Machado, duas antropólogas cujas declarações sobre o assunto tornaram-se públicas, esboçaram diferentes reações, mesmo que em alguma medida próximas. Para a primeira, os “rolezinhos” não seriam muito mais que jogos pueris sem conotações políticas explícitas. Seria melhor confinar tais movimentos a espaços circunscritos ou dar a esses jovens atividades tidas como mais nobres, que tivessem por efeito retirá-los da pobreza. Nessa mesma entrevista, Zaluar ressalta que o rolezinho seria “un juego, no un movimiento social” de jovens que necessitam de “diversión y están buscando una forma de divertirse. Lo que tiene que ser analizado es si su presencia en el centro comercial es perjudicial”, motivado por um sentimento difuso de agressão. Nesse contexto, “podríamos hablar de una lucha de clases, pero una lucha de clases sin mucho propósito. Lo que hay es que estimular que ellos se desarrollen, que hagan cosas creativas, para que salgan de la pobreza”.

61Pinheiro-Machado, por seu turno, deixa entrever certo desconforto na tentativa de entender as implicações dos atos desses jovens como ato político, já que não possuem intencionalidades claramente delimitáveis ou resistência aberta a coisa alguma, e econômico, já que, embora consumidores, estariam ocupando espaços que até então lhes eram negados pela sociedade abrangente.

62Por isso seria muito difícil “decir si son protestas conscientes. De alguna forma todas son. Hay una reinvindicación clara de ocupar espacios urbanos privilegiados, de sobresalir. Es un ‘basta’ a la invisibilidad”. Entretanto, seu resultado político parece interessante na medida em que esses sujeitos “van dando cuenta del tremendo papel político que desempeñan. Es un evento vinculado al culto del consumo de ostentación. En ese sentido, es importante evitar romancear y decir que se trata de un fenómeno de lucha de clases de izquierda”, mas resultado de um processo similar no qual “clases populares bajan de la favela y ocupan espacios que les fueron negados. Ahí entonces la sociedad reacciona, con rabia y rencor. La periferia siente en la piel la exclusión, siente que no es benvenida y así va tomando cada vez más consciencia de su papel político”.30

  • 31 A antropologia brasileira parece ter reconfigurado ou diluído o debate das classes em outras esfera (...)
  • 32 A sistemática ausência da antropologia no debate mais amplo sobre classes sociais já foi sentida po (...)

63As reações de ambas as intelectuais refletem, de outra perspectiva, a crise de categorias antropológicas para o enquadramento desses sujeitos, tradicionalmente vistos nos moldes dos grupos populares que ocuparam a etnografia ao longo dos anos 1980 e 1990 – concebidos por muitos como “resistentes” à grande política e economia. Existe um desconforto em pensá-los como consumidores de classe média “integrados” por vias convencionais à sociedade. Se, no primeiro caso, estamos tratando do capital simbólico por excelência da disciplina que se estruturou sobre o estudo das classes populares,31 no segundo estamos lidando com a relutância da antropologia brasileira em enfrentar o debate acerca das constituições das classes médias e de suas estratégias de consumo.32

64Esta breve contextualização dos caminhos que levaram aos rolezinhos como eventos disruptores de tensões mais amplas na esfera pública brasileira aponta para a existência de duas linhas de ação argumentativas. A primeira e mais concorrida organiza-se em torno de uma oposição entre quem via nos rolezeiros a formulação de estilos de vida baseados no consumo e na histórica desigualdade social e econômica do país. Nisso, a produção moral dos sujeitos sugere que o consumo prescinde de justificações quanto aos espaços ou modos como ocorre e remete seus defensores a outros territórios de legitimação, como a própria ideia de que a “economia” brasileira e o caráter cívico da nação sairia fortalecida desse processo, seja pela positividade intrínseca do consumo, seja pelo acesso a espaços de práticas de consumo.

65No outro polo, os rolezeiros são tratados pelo que lhes falta para satisfazer a arbitrária condição do que se imagina ser a classe média. Nesse caso, a produção moral dos sujeitos faz ressaltar que o consumo se definiria pelos seus rituais de consumação e não pelo ato demarcatório em si, o que deslegitimaria os rolezeiros e suas práticas sob a justificativa de que tratam de pobres enviesadamente integrados à sociedade de consumo.

66Finalmente, uma segunda onda de análises parece sugerir que não se trata de fenômenos facilmente redutíveis a um ou outro polo do debate em seus imbricamentos que o problema da “inclusão social”, isto é, na produção de subjetividades resultantes da própria pedagogia pragmática do consumo, da cidadania, do acesso a espaços, bens e modos de apropriação que redesenham a desigualdade brasileira nesse mesmo ato de consumação. Assim, supõe-se que, se são refratários a quaisquer explicações convencionais, é porque, tal qual a nova classe média, não são nem bem consumidores, nem bem cidadãos; nem bem alienados, nem bem politizados.

67E, assim como tem sido o argumento da segunda onda de repúdios aos rolezinhos, tudo se passa como se uma voz oculta pronunciasse: “deixe‑os consumir, mesmo que não saibam muito bem como fazê-lo, o tempo se encarregará disso”, na expectativa, esta é a verdade, de que o tempo se encarregue de produzir novos quadros analíticos para o entendimento apropriado desses e de outros fenômenos ainda por vir.

68Os jogos taxonômicos subjacentes às disputas políticas pelo monopólio da significação dos rolezinhos sugerem passagens sutis entre retóricas e expertises enunciativas difusas e fragmentadas. Não seria possível observar os caminhos delineados por esse debate, que equivale a atentar para as apropriações dessas justificações, sem perceber que esta é uma retórica móvel e adaptável às circunstancialidades evocadas pelos fenômenos em jogo.

Uma antropologia nos e dos espaços públicos

69Para compreender as formatações móveis dos rolezinhos, devemos atentar para um agente central desses debates: o shopping center. Esse elemento tomado isoladamente, entretanto, não explica as razões que levaram intelectuais de diferentes espectros do campo acadêmico e político a se pronunciarem apaixonadamente, num curto período, em veículos de comunicação e plataformas digitais. Sugerimos que o debate que colocou em questão o rolezinho serviu, em grande parte, para ratificar um importante traço da tradição acadêmica da ciência social brasileira: a de que a sociedade brasileira se constitui sobre as bases de um apartheid social.

70Os shoppings funcionam, nessa linha de pensamento, como lócus concretos onde se realiza e torna visível a abissal desigualdade brasileira. Em poucas palavras, tanto para seus ocupantes quanto para grande parte dos intelectuais, shopping centers configuram microcosmos fortificados e seguros, verdadeiros templos dedicados ao consumo e à afirmação de uma ideia arraigada: ao mesmo tempo em que afirmam a identidade de uns, excluem tantos outros por sua ausência sistemática dessas práticas.

71O interesse despertado pelos rolezinhos advém de uma dupla contradição no plano empírico e teórico: a imagem da ocupação organizada dos shopping centers por frequentadores inesperados pelos planejadores parece contradizer o monopólio de ocupação das classes médias tradicionais e coloca em xeque visões sedimentadas nessas clivagens para explicar a sociedade brasileira.

72No entanto, o shopping já não pode ser compreendido nos mesmos termos em que se consolidou no imaginário teórico e social. Para dizer algo sobre a complexidade desse Novo Brasil, é preciso acentuar mudanças nas fronteiras dessa exclusão, e nada melhor para isso que desenhar os contornos desses igualmente novos incluídos.

  • 33 Disponível em : http://www.dcomercio.com.br/2014/02/25/agora-shoppings-miram-rolezinhos. Acesso em  (...)

73Idealizados pela gramática moral e governamental que enfatiza a existência de uma nova classe média em expansão, o argumento é o de que já não se pode ignorá-los. Diferente de antes, a mobilidade econômica pela qual passaram já os autoriza a assumir a figura do cidadão-consumidor. Ignorá-los e mesmo repreendê-los seria, antes de tudo, um erro de cálculo no planejamento econômico dos espaços públicos de consumo.33

74O shopping center é tomado como o espaço onde é ensaiado e encenado um novo cálculo econômico de adequação de uma desigualdade social em mudança. Agora seria preciso agradar esse novo público-alvo: os jovens recém-consumidores ávidos pelos efeitos de seu ingresso no mundo do consumo, mesmo que às custas da insatisfação de seus antigos consumidores. O shopping se torna um ponto cardinal para uma readequação das explicações sobre o Brasil, seu povo, suas relações de classe, a ocupação do espaço e as configurações do urbano.Mas será o shopping center igualmente o ponto de chegada para os próprios rolezeiros? Será ele o instrumento público de realização de suas subjetividades?

75As explicações que circularam nos media não fornecem uma única matriz explicativa. Para um setor, os shoppings seriam usados por seu conforto arquitetônico e estético. Para outro, dariam visibilidade a um projeto político de contestação fundamentado, paradoxalmente, no consumo de marcas e espaços que, quando usados pela classe média tradicional, nada teriam de subversivo. Propomos por um momento deixar de lado as interpretações que veem nos rolezeiros agentes politicamente inspirados ou alienados sociais, para enxergá-los como pessoas, em suas complexidades motivacionais e ambivalências subjetivas.

  • 34 Boellstorff (2009) faz uso da nomeclatura virtual e atual para dar conta da produção de diferença e (...)

76Talvez um importante ponto de partida nessa direção seja atentar para o que acontece antes da chegada dos rolezeiros aos shopping centers. Como a cena que abre este artigo indica, estes são apenas um dos nódulos de fluxos e práticas de sociabilidade que se concretizam ao longo de uma cadeia de fenômenos que sobrepõem, em diferentes registros, espaços virtuais e atuais.34 O desafio é evitar considerar os primeiros como lugares de bastidor onde se organizam processos que apenas se “realizam” na concretude pública dos shoppings. Como bem colocam Miller e Slater, a distinção entre dimensões online e offline decorre de uma “falta de atenção às formas em que o objeto e o contexto precisam ser definidos em relação um ao outro” (2004:47).

77A sociabilidade em espaços virtuais e em shopping centers é mutuamente constitutiva, fruto de um “relacionamento complexo e nuançado entre os mundos online e offline que produz as estruturas normativas desses dois mundos” (Miller & Slater, 2004:48). É necessário reconhecer que a produção subjetiva desses jovens rolezeiros transborda de modelos teóricos tradicionais sobre público e privado, virtual e “real”, enquanto dimensões impermeáveis e assimétricas. Parece claro que o que é apontado convencionalmente como a dimensão do privado e da virtualidade, as ações nas redes sociais, é na verdade o próprio modo como o rolé se atualiza em plenitude.

78Isso não diz respeito somente a um momento anterior à circulação no shopping e na cidade. O que acontece nesses espaços é materializado em função da disseminação simultânea e posterior de imagens e narrativas por meio da interação técnica entre sujeitos, plataformas e dispositivos digitais. A experiência online não é uma simples válvula de escape para a vida real, mas ao contrário: por meio da virtualidade os rolezinhos se atualizam. Isso nada tem de virtual em um sentido de sua não existência.

79A brecha entre o virtual e o atual pode reverberar em práticas cotidianas de identificação e interação, manifestas em maneiras variadas de interpenetração e constituição mútua, de modo que aspectos imagéticos e textuais ligados à ação em territórios concretos e plataformas virtuais não se colocam como apenas uma âncora abstrata a partir da qual se tecem relações (Boellstorff, 2009). Eles são a própria modalidade a partir da qual é possível experimentar a noção de presença e reconhecimento.

80Isso implica que, para uma antropologia que pretende tomar a cidade e os espaços públicos enquanto arena a partir da qual constrói sua reflexividade teórica e empírica, não é mais possível apoiar-se em categorias que pensam o urbano de maneira dissociada de sua malha sociotécnica. A mobilidade proporcionada por tais dispositivos conduz à “reorganização de nossas vidas e nossas comunidades ao redor da comunicação móvel de massa”, que opera como um catalisador que passa a moldar não somente fluxos citadinos, mas a própria intervenção no espaço. Esta é cada vez mais afetada pela “indústria da tecnologia”, que nos convida a “construir um mundo ao redor de sua visão de eficiência, segurança e conveniência” (Townsed, 2013:Kindle Location 352 de 7336)

81Antes de acionar uma chave de entendimento ancorada em categorias de classe, talvez seja relevante questionar os modos como sujeitos contemporâneos se engajam com as tecnologias digitais no curso da vida. Especialmente, pensar nos modos como estamos nos construindo, no que estamos nos tornando, em meio a máquinas, redes e imagens.

82Entender como mecanismos de poder operam é essencial para construir uma compreensão da metrópole em uma escala que transcende os fluxos citadinos cotidianos e aponta para processos políticos e econômicos que compõem o urbano, desvelando intencionalidades, agenciamentos e a cadeia relacional acionada por essa narrativa além de seu plano retórico.

83Uma antropologia dos espaços públicos e da urbanidade precisa questionar-se constantemente sobre os efeitos que a articulação dessas práticas em tais lugares produz sobre suas subjetividades, mas também sobre a reinvenção desses espaços urbanos como nódulos privados de uma sociabilidade virtual que se realiza no entrecruzamento entre técnica e estética.

Considerações finais

84A título de conclusão, gostaríamos de apontar para a incompletude definitória desses processos classificatórios e sua dinâmica reflexiva. Basta, para isso, recordar a rapidez e criatividade com que essas mesmas categorias que pretendem representar e espelhar a realidade são incorporadas como signos políticos pelos próprios participantes desses fenômenos – que, se antes não necessariamente se definiam pelo termo “rolezeiros”, rapidamente passaram a adotá-lo consoante o equilíbrio de forças em jogo. Incapaz de enxergá-lo, a crítica do fenômeno descurou da própria dinâmica de apropriação e reapropriação de objetos, coisas e ideias na origem de uma compreensão nuançada dos rolezinhos como resultados de feixes de poder e nódulos de emaranhados entre o real das celebrações e o virtual de suas organizações.

  • 35 Os protestos no Brasil em 2013, conhecidos como Jornadas de Junho, surgiram em grandes capitais par (...)

85A proposta interpretativa que sugerimos neste artigo parte deste quadro consciente e necessariamente incompleto da realidade observada, bem como da insuficiência de instrumentos teóricos capazes de absorver suas múltiplas vocalidades. É inegável que, nesse sentido, muitas das especificidades e limitações das repercussões apontadas sobre os rolezinhos sirvam, igualmente, de ponto de partida analítico para um entendimento mais nítido dos protestos ocorridos em junho de 2013.35 Naqueles episódios, encontramos leituras maniqueístas da realidade brasileira, conduzindo à atenção pressupostos morais de base, como certa extensividade subjetiva entre os manifestantes e a “nova classe média”, baseada na incontestabilidade da “saída da pobreza” e na crença de que ela tenha evocado subitamente tal reconfiguração de pobres irrelevantes a cidadãos de bem – não apenas conscientes de suas obrigações como capazes de encontrar os caminhos tidos como adequados para expressar suas insatisfações nos espaços públicos. Outro desafio interpretativo colocado está em evitar perceber nesses fenômenos a realização de agregados previamente estabelecidos em outros níveis de realidade, tais como as redes sociais, como se a realidade vivida não pudesse ser mais ou outra coisa do que a congregação e celebração de grupos previamente configurados em espaços digitais ou agregados reais esparsos, totalmente dissonantes dos universos virtuais a eles entramados.

86Este artigo pretendeu, assim, responder ao desafio interpretativo colocado pelos rolezinhos a partir do engajamento de intelectuais orgânicos na configuração da esfera pública, bem como das possibilidades oferecidas por uma abordagem “conectada” dos universos virtuais e reais. Como vimos, falar sobre rolezinhos significa produzir justificações para questões políticas e intelectuais mais amplas: sobre o que é o Brasil, o que acontece com sua desigualdade e suas pessoas, ou seja, problemas que tocam em projetos de conhecimento no Brasil sobre o Brasil. Da mesma forma, o hiato entre as interpretações dos rolezinhos e sua riqueza etnográfica deflagrou a urgência de uma antropologia dos espaços públicos capaz de lidar com as sobreposições entre o virtual e o real, entre o público e o privado, nas novas configurações urbanas do Brasil contemporâneo.

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Notas

1 Disponível em : https://www.facebook.com/events/1398139017123890/ ?fref =ts. Acesso em : 12/12/2014.

2 Termo pelo qual se passou a referir às pessoas que frequentam os rolés.

3 O funk ostentação é um estilo musical que, diferentemente do funk carioca, não fala sobre crime ou drogas, mas sobre mulheres, dinheiro, marcas e bens de consumo. Sem discos lançados, os MCs adquiriram fama com clipes publicados no site YouTube.

4 A PNAD classifica cinco grandes categorias de “padrão de vida” : alta classe média, média classe média, baixa classe média, massa trabalhadora e miseráveis.

5 Iniciada em 2 de dezembro de 2009, a Operação Delegada foi realizada a partir de um convênio entre a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, e o Governo do Estado. Policiais militares, em dias de folga, passaram a fiscalizar os ambulantes que trabalhavam irregularmente na Rua 25 de Março e adjacências. Conhecida popularmente como “bico oficial” de policiais, a ação foi tratada como uma “oportunidade” de usar dias de folga para complementar a renda familiar. A iniciativa se tornou controversa em esferas políticas e dentro da corporação. Os primeiros debates se concentraram em torno da necessidade de um “novo rumo” para a Operação Delegada : ao invés de fiscalizar ambulantes, deveria ser direcionada ao combate à criminalidade nas periferias de São Paulo. Em 2014, a operação foi ampliada para compor patrulha ostensiva.

6 Esses foram os casos que mais receberam atenção da mídia tradicional, aos quais buscamos limitar o escopo de nossa pesquisa. Seria uma ousadia propor uma possível cronologia do rolé, dada sua notável espontaneidade.

7 Disponível em : http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=152841. Acesso em : 12/12/2014.

8 Disponível em : http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/haddad-regulamenta-lei-que-preve-multa-de-r-1-mil-contra-pancadoes.html. Acesso em : 12/12/2014.

9 Disponível em : http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/01/haddad-veta-projeto-que-proibia-realizacao-de-bailes-funk-em-sp.html. Acesso em : 12/12/2014.

10 Levantamento quantitativo realizado através da plataforma Google Trends, que mapeia citações de termos-chave e número de buscas.

11 Disponível em : http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-nova-palavra-de-protesto-no-brasil-chamase-rolezinho-1619964. Acesso em : 12/12/2014.

12 Disponível em : http://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-e-so-pelos-bailes-funks-2178.html. Acesso em : 12/12/2014.

13 Disponível em : http://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/49221-rolezinho-como-as-redes-sociais-impulsionaram-esta-moda.html. Acesso em : 12/12/2014.

14 Disponível em : http://www.publico.pt/mundo/noticia/a-nova-palavra-de-protesto-no-brasil-chamase-rolezinho-1619964. Acesso em : 12/12/2014.

15 Disponível em : http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rolezinho-ganha-tom-politico-e-vira-passeata. Acesso em : 12/12/2014.

16 Disponível em : http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1397831-rolezinhos-surgiram-com-jovens-da-periferia-e-seus-fas.shtml. Acesso em : 12/12/2014.

17 Disponível em : http://www.blogdokennedy.com.br/eleitor-da-nova-classe-media-tem-3-demandas-chave-diz-meirelles/. Acesso em : 12/12/2014.

18 Dissonância cognitiva é uma categoria psicológica aplicada ao marketing, usualmente empregada para dar conta das diferenças de linguagem entre públicos-alvo de campanhas de consumo de produtos.

19 Multiculturalismo refere-se ao reconhecimento, por meio de políticas de governo, das diversidades e especificidades de comunidades e grupos dentro de uma sociedade mais ampla.

20 Disponível em : http://www.sae.gov.br/site/?p=11401. Acesso em : 12/12/2014.

21 Disponível em : http://www.blogdokennedy.com.br/eleitor-da-nova-classe-media-tem-3-demandas-chave-diz-meirelles/. Acesso em : 12/12/2014.

22 Disponível em : http://jornalggn.com.br/noticia/rolezinho-nao-e-um-movimento-politico-diz-renato-meirelles. Acesso em : 12/12/2014.

23 É curioso que a proliferação de análises acerca deste fenômeno apareçam, em parte, como o resultado que tornou possíveis os próprios protestos e rolezinhos. Boa parte desses engajamentos acontece por meio da internet, através de blogs, entrevistas on-line e postagens em redes sociais diversas. Tão interessante quanto os processos que pretendem explicar é atentar às repercussões em redes móveis e de efeitos rapidamente reconfiguráveis.

24 A apropriação de Souza da obra de Bourdieu parece se realizar a partir da análise da distinção no contexto francês (2008) – embora possa remontar a outros livros, como a Dominação masculina (2007), ou os escritos sobre Argélia (2006). Parecem menos presentes as reflexões tardias de Bourdieu (1996) em torno dos múltiplos campos ou dos atos desinteressados.

25 Sobre as apropriações recentes dessa literatura, ver Botelho e Schwarcz (2009), Ricupero (2008), Roiz (2010) e Souza e Lamonier (2010).

26 O argumento não é essencialmente novo (Xavier Sobrinho, 2011). O tom acalorado dos debates não permite uma explicitação sobre noção de classe social, tomando-a geralmente como algo dado ou modelo configuracional fora de contexto. Scalon & Salata (2012) chegam a conclusões semelhantes na tentativa de definir esse novo estrato.

27 Disponível em : http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-role-da-rale,1120064,0.htm. Acesso em : 12/12/2014.

28 Disponível em : http://internacional.elpais.com/internacional/2014/01/14/actualidad/1389736517_226341.html. Acesso em : 12/12/2014.

29 Disponível em : http://internacional.elpais.com/internacional/2014/01/14/actualidad/1389736517_226341.html. Acesso em : 12/12/2014.

30 Disponível em : http://internacional.elpais.com/internacional/2014/01/14/actualidad/1389736517_226341.html. Acesso em : 12/12/2014.

31 A antropologia brasileira parece ter reconfigurado ou diluído o debate das classes em outras esferas de discussão. É possível constatar que, se durante o regime militar o que estava em jogo era o engajamento do operariado, o período imediatamente após a redemocratização foi marcado por uma reintrodução do “popular” como categoria de análise (Cardoso, 1986 ; Duarte, 1986 ; Fonseca, 2000 ; Magnani, 1984 ; Zaluar, 1985), rapidamente diluídas em outras questões que marcaram a década de 1990 – identidade, consumo, globalização e estilos de vida.

32 A sistemática ausência da antropologia no debate mais amplo sobre classes sociais já foi sentida por outros intelectuais (Fonseca, 2006). Se nos restringíssemos à questão das classes médias, contaríamos apenas com a exceção da linha de pesquisa inaugurada por Gilberto Velho (1973, 1987, 1994).

33 Disponível em : http://www.dcomercio.com.br/2014/02/25/agora-shoppings-miram-rolezinhos. Acesso em : 12/12/2014.

34 Boellstorff (2009) faz uso da nomeclatura virtual e atual para dar conta da produção de diferença entre o que está dentro e fora dos ambientes virtuais em um sentido etnográfico, não ontológico. Apesar de considerar que essas terminologias possuem fragilidades específicas, acredita ser menos perigoso do que opor o virtual ao real, argumento que fortalece concepções fortemente fixadas no binômio natureza e cultura.

35 Os protestos no Brasil em 2013, conhecidos como Jornadas de Junho, surgiram em grandes capitais para contestar aumentos nas tarifas de transporte público. Rapidamente, ganharam apoio popular após forte repressão policial. Atos semelhantes proliferaram em diversas cidades do Brasil e do exterior em apoio aos protestos, passando a abranger temas como gastos públicos em grandes eventos esportivos internacionais, má qualidade dos serviços públicos e indignação com a corrupção política.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Louise Scoz Pasteur de Faria e Moisés Kopper, «Os rolezinhos e as metamorfoses do urbano no Brasil contemporâneo»Anuário Antropológico, v.42 n.2 | 2017, 239-266.

Referência eletrónica

Louise Scoz Pasteur de Faria e Moisés Kopper, «Os rolezinhos e as metamorfoses do urbano no Brasil contemporâneo»Anuário Antropológico [Online], v.42 n.2 | 2017, posto online no dia 12 junho 2018, consultado o 15 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/aa/2286; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/aa.2286

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Autores

Louise Scoz Pasteur de Faria

Louise Scoz Pasteur de Faria é doutoranda em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: louisescoz[at]gmail.com.

Moisés Kopper

Moisés Kopper é doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: moiseskooper[at]gmail.com.

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