1Os aportes do livro O gênero do cuidado: Desigualdades, significações e identidades, de Nadya Guimarães e Helena Hirata, apresentam-se como essenciais na compreensão das questões envolvendo a temática do cuidado. As autoras possuem uma longa trajetória de pesquisa na sociologia do trabalho, e sua perspectiva analítica considera as relações interseccionais entre raça, gênero e classe, partindo do interesse teórico e interdisciplinar em compreender o trabalho das mulheres, a articulação entre trabalho doméstico e trabalho profissional, e o cuidado enquanto profissão.
2Antes de seguir para uma análise mais profunda sobre a estrutura e os capítulos do livro, acredito que seja importante tecer algumas linhas sobre como o cuidado é compreendido e analisado pelas autoras teoricamente. O trabalho de cuidado remunerado é desempenhado pelas trabalhadoras domésticas e por aquelas que se denominam como cuidadoras através da profissionalização recente da atividade. Mas, além das duas formas em que o cuidado aparece como profissão, há também o cuidado invisibilizado, relativo às tarefas domésticas e de reprodução realizadas pelas mulheres e meninas no seio de suas famílias. No Brasil, ainda há uma especificidade sobre essa categoria, algo que as autoras souberam olhar com muita atenção: o cuidado que “não diz seu nome” ou “ajuda”, como as interlocutoras da pesquisa de Nadya Guimarães souberam categorizar. As ajudas representam as redes de apoio, a reciprocidade da vida comunitária, as formas pelas quais as mulheres, em sua maioria negras e pobres, se organizam para conseguir, muitas vezes, se inserir no mercado de trabalho.
3O livro está estruturado em oito capítulos e organizado em três partes. No capítulo 1, as autoras abordam o caminho pelo qual se formou a agenda dos estudos sobre o cuidado, tanto nos Estados Unidos quanto na França, com o principal objetivo de demonstrar as especificidades sócio-históricas e conceituais que marcaram o desenvolvimento do estudo na América Latina.
4É importante destacar que, segundo as autoras, a difusão internacional dos estudos sobre cuidado se deu dentro do que se convencionou chamar de “crise do cuidado”, questão muito latente na agenda dos países do “norte global”. O aumento da expectativa de vida gerou maiores graus de dependência e necessidade de cuidados, somados à escassez de mão de obra gratuita feminina devido à crescente participação das mulheres no mercado de trabalho. É nesse contexto que a organização e o trabalho do care passou a se constituir a partir da transferência de trabalhadoras migrantes para aqueles países.
5Na América Latina, os estudos e as pesquisas sobre o cuidado iniciaram sua trajetória dentro da temática específica das migrações internacionais. As grandes análises comparativas da época buscavam respostas à “crise do cuidado” mencionada anteriormente. A respeito disso, Roberto Marinucci (2007), em artigo sobre a feminização das migrações, pontuou que, mais do que o aumento em números, o olhar das pesquisas sobre a realidade migratória passou a ser pensado através de uma perspectiva de gênero, dando assim uma maior visibilidade para as mulheres.
6O capítulo 2 trata da recente profissionalização da ocupação de Cuidador e Cuidadora. As autoras buscam responder o porquê de uma atividade desempenhada há tanto tempo precisar de novas palavras para nomear a função. Esse capítulo busca demonstrar como a ocupação de cuidador/a reconfigura a divisão do trabalho de cuidar, tanto entre as provedoras do cuidado (donas de casa, empregadas domésticas, cuidadoras) como entre os espaços de cuidar (família e mercado), evidenciando as suas configurações e tensões.
7No capítulo 3, são exploradas as interfaces do cuidado, observando e percorrendo as intersecções das dimensões macro e microssociológica e a significação prática dessa atividade. As autoras fazem o exercício interpretativo de unificar todas as ramificações do cuidado, partindo de uma resposta teórica até a ideia de circuito. A solução encontrada para “unificar” as pontas do cuidado se apresentou de maneira muito interessante, porque se pensarmos em cada ramificação isoladamente, deixaremos de perceber suas relações e conexões, e como todas essas divisões têm uma origem comum na exploração da força de trabalho das mulheres. Ainda no capítulo 3, as autoras desenvolvem dois outros conceitos importantes para compreender os circuitos de cuidado: o trabalho relacional e os circuitos de troca.
8O capítulo 4 dá sequência às considerações tecidas no capítulo 2. Aqui, as autoras buscaram demonstrar como a mercantilização do trabalho feminino abriu espaço para uma mercantilização do cuidado, porque à medida que as mulheres de classe média saíam para trabalhar, deixavam seus filhos e atividades domésticas aos cuidados de outras mulheres. O argumento principal das autoras é que, no Brasil, o trabalho do cuidado se assenta na fluidez em que circunscreve o trabalho profissional do cuidado e o trabalho doméstico, indicando o modo como o cuidado se profissionaliza e se mercantiliza no país.
9No capítulo 5, as autoras exploram o espectro do cuidado, incluindo outras formas de significar a atividade de cuidar. Este capítulo é dedicado a desenvolver a ideia do cuidado como ajuda, mencionada anteriormente, e um dos seus objetivos é responder de que forma os indivíduos (re)configuram suas relações interpessoais de maneira a executar as atividades que consideram essenciais para a vida econômica, e “as ajudas” são algumas delas.
10As atividades que se configuram como “ajudas” “não costumam ser significadas como trabalho, ocupação regular ou profissão; bem assim quem as exerce tampouco se identifica como cumprindo uma obrigação de cuidar” (Guimarães e Vieira 2020, 162). Tais ajudas se sustentam em uma espécie de dádiva, para utilizar o conceito clássico das ciências sociais de Marcel Mauss (2015). E assim como na dádiva, as ações prestadas como “ajudas” ganham um sentido próprio a partir das relações sociais. Elas se configuram como formas não remuneradas de cuidar, em que o cuidado geralmente é retribuído com cuidado ou outras formas de presentes, trocas que não necessariamente envolvem dinheiro, embora nos casos em que ele exista, seja sempre bem-vindo.
11As autoras consideram relevante ressaltar a dimensão de classe das pessoas que utilizam o cuidado como ajuda. O argumento delas é que o cuidado como ajuda pode fazer com que essas mulheres, no futuro, acedam ao cuidado profissional, e mostram como as “ajudas” aparecem como mecanismo de promotor de cuidado para as pessoas pobres.
12Somada a essa reflexão, eu acrescentaria ainda a questão racial. Angela Davis (2016), em um artigo publicado pela primeira vez na década de 1980, fala sobre a invisibilidade das tarefas domésticas, principalmente quando desempenhadas por mulheres negras. Além disso, pontua que quando as mulheres brancas se inseriram no mercado de trabalho, as mulheres negras já trabalhavam até não poderem mais, deixando seus próprios filhos aos cuidados de outras pessoas. Desde muito cedo, as mulheres negras assumiram a responsabilidade de provedoras de suas famílias, trabalhando na casa de outras famílias, realizando as tarefas domésticas e cuidando de outras crianças e idosos, para que suas patroas pudessem se inserir no mercado de trabalho.
13Dessa forma, retomando o argumento das autoras, podemos inferir que “as ajudas” e o cuidado exercido como moeda de troca funcionam para que mulheres, principalmente negras e pobres, mercantilizem a sua própria mão de obra, seja se inserindo no mercado profissional do cuidado ou provendo cuidado na forma de “ajuda” para que outras mulheres de seu convívio possam trabalhar.
14O capítulo 6 versa sobre a questão dos tabus no cuidado profissional. As autoras abordam questões relacionadas à sexualidade, ao corpo e às emoções das trabalhadoras quando em contato com pessoas dependentes, como idosos que necessitam serem higienizados por elas e que, em alguns casos, “aproveitam a oportunidade” para fazer investidas sexuais. A subjetividade, a sexualidade e o corpo são dimensões fundamentais para realização das atividades e, por isso, indispensáveis também na compreensão das interações entre beneficiários(as) e os(as) provedores(as) do cuidado.
15Nos capítulos 7 e 8, que encerram o livro, as autoras realizaram uma sistematização dos resultados das comparações feitas entre os países mencionados ao longo da obra, com foco nas relações sociais do cuidado e de forma a revelar as particularidades do Brasil. A temática das crises e a sua relação com o cuidado também é objeto dessa parte, com destaque para a profissionalização do cuidado, principalmente no que diz respeito à fragilização dos vínculos trabalhistas, a pandemia de Covid-19 e as suas consequências para o Brasil.
16O livro de Nadya Guimarães e Helena Hirata é um verdadeiro achado sobre o tema do cuidado. As autoras realizaram um excelente trabalho, em um primeiro momento ao nomear o tema, suas divisões, os conceitos, depois em precisar como a ocupação surgiu no Brasil e, em seguida, ao apresentar uma resposta teórica para o “cuidado que não diz seu nome”. É um livro que contribui para muitas áreas de estudos nas Ciências Sociais, incluindo a das migrações, a sociologia e antropologia da saúde, sociologia do trabalho, antropologia econômica, e, principalmente, os estudos sobre gênero.